"A vida voltou a conter muitas vidas dentro, com a minha a parecer sadiamente diminuta, desimportante, posta com outras numa esquecida gaveta por abrir"*
[Edição #55]
Descubro outros rostos da língua mãe ao visitar o Porto pela segunda vez. Como se aos meus ouvidos se reinventasse, tirando proveito da minha ignorância da sua forma bruta. A calçada vira passeio, o não entender transmuta-se em não perceber, o obrigada de coração renuncia aos acordos de gênero para ser um agradeço imenso. Os sons lembram pigarros, limpadas de garganta da boca que pouco se movimenta para articular as palavras. Apesar da sonoridade distinta, as semelhanças de pouco em pouco afloram e já não é tão estranha a pronúncia.
Neide, nossa primeira condutora de carro de aplicativo, não vê um dos seus cinco irmãos há mais de 30 anos. Só não apagou o rosto dele das lembranças porque ainda conseguem se falar por chamadas de vídeo. Natural do Espírito Santo, se não me falha a memória. Ou interior de São Paulo? Das duas filhas, uma mora em Portugal. Pelo retrovisor noto os olhos marejando quando conta que a outra vive no Brasil, e já não se veem há dois anos. Neide trabalhava com transporte escolar, mas largou tudo para se desdobrar em vários empregos no Porto.
Ouve dos portugueses que as mulheres brasileiras são perversas, e que os brasileiros tiram proveito do solo português. Queixam-se do absurdo sotaque brasileiro predominante, quase apagando o português. Sorri sem mostrar os dentes diante de tanta bobajada. Guerreira, desta casca-grossa de imigrante conheço a textura, sabemos exibi-la com orgulho, apesar de inflamadas de dor. Tentar crescer num solo em condições impróprias é penoso.
Quem nos serve no Brasão é um rapaz jovem, que se instalou no Porto há exatos 12 meses. Trocou o Tambaqui e o Tucunaré pelo Bacalhau. Deixou para trás a Amazônia para nos vender o carro-chefe da casa, a francesinha. Nós o identificamos pelo sotaque. Irônico trocar os papeis depois de sete anos de gente perguntando de onde venho justo por conta do sotaque.
Afonso, que pensei ser português pelo nome, é quem nos leva de volta ao hotel. Manifestou brasilidade no boa tarde mineiro. Aportou no velho continente jovem adulto, com 19 anos, pouco tempo após tirar a carteira de motorista. Chegou em Portugal em 2019, quando ainda não se pensava em pandemia; conheceu e passou a dominar as ruas do Porto ao se tornar motorista de aplicativo.
Em diversos cantos encontramos brasileiros procurando realização financeira em Portugal. O euro vale mais que o real, mas não significa que o salário seja justo em qualquer país europeu. Na hora do desespero, até nos esquecemos. A facilidade da língua em comum tem seu peso.
Tento ver nisso algo de humor, são tentativas de reparação histórica. Meu pai acha graça, nos seus cansados 74 anos, repete a pergunta: “o que você disse que os brasileiros buscam em Portugal, filha?”. “Reparação histórica”. Minha mãe puxa o bloco de papel sobre a mesa do quarto do hotel, onde escreve a minha fala.
Desapego do ranço, a geração atual não pode se responsabilizar pelos crimes dos seus antepassados em terras brasileiras. Quem nasceu em Portugal e não debandou também acumula mais de um emprego, e vê desaparecer a reserva de tempo ao lazer. Encontro nessa língua truncada dos portugueses a mesma garra e suor a cada visita.
Minha escalada de sobrevivência tem os seus problemas de tradução numa terra plana, mas não me queixo. Desfruto de uma realidade mais leve. Neste Portugal fui de passagem reclamar o colo dos meus pais, que também chegaram com data marcada para regressar.
Estar com eles é flutuar no tempo. Navegar entre memórias de infância, os minutos acelerados do presente e o vislumbre do futuro onde se colocam cada vez mais ausentes. Escorre pelas margens do meu rosto o amor por suas vivências e por me transmitirem parte deste legado.
Observo os vincos na pele como acúmulo de experiência; marcas do quanto viveram e aprenderam. Mas as mudanças físicas são também recibo do tempo corrido. Esse amor transbordante conforta, mas também machuca, por trazer consigo a angústia de enxergar os traços de envelhecimento como prazo de validade. Avançar no tempo é também contar os dias para o fim.
Ainda não dei jeito de lidar com a finitude.
Na nossa última refeição juntos, antes de ir ao aeroporto, chorei a frustração de, aos 33 anos, ainda não ter grandes realizações profissionais e financeiras. Mas meu peito também escoou naquele almoço a dor deste tempo apressado e das distâncias que me massacram o peito.
"As experiências são o que são; depois disso, é a memória"*
*Os trechos destacados em blocos são todos do livro A história de Roma, de Joana Bértholo. Comprei na viagem que inspirou a edição de hoje, mas vi que será publicado em breve no Brasil pela Dublinense. Está em pré-venda e você encontra mais informações aqui.
Vamos continuar esta conversa?
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Um cheeeiro e até a próxima!
Que texto lindo!
Quais grandes realizações financeiras ou sei lá o quê você espera? Estar viva e minimamente capaz de fazer qualquer coisa atualmente eu já vejo ser uma grande realização.
A gente tem que deixar os sonhos de outras gerações pra trás, tirar pelo menos esse peso. Que você tenha suas realizações e o sucesso que tanto almeja e merece, mas que não carregue isso como um fardo.
grande abraço