[Edição #33]
Aos meus olhos pouco perfeccionistas, a busca pela excelência e precisão nos detalhes é um disfarce para ocultar pequenos horrores. Esse verniz de perfeição muito me intriga. Movida pela curiosidade, vou desvelando, gradualmente, o que se esconde por trás da fachada impecável. Os pés pequenos com unhas bem feitas roçando o tapete cor-de-rosa; o delineado impecável realçando os olhos azuis, enquanto mãos delicadas aplicam laquê nos cabelos. Em Priscilla, de Sofia Coppola, cada elemento em cena é cuidadosamente traçado, construindo uma composição visual onde todos detalhes têm algo a nos dizer.
Há música de fundo, mas nada se diz no silêncio sensorial. Da cadeira do cinema, tive a sensação de ser eu mesma aquela moça, explorando texturas e preparando-me para sair. Por trás de tanto requinte, sobra espaço para acomodar um emaranhado de desconfortos.
Vejo em Priscilla paralelos com o longa de estreia de Sofia, As Virgens Suicidas (1999). Ambos são adaptações de livros, e prevalece a estética etérea, onde o granulado da película e o tom meio borrado permeiam as cenas. As duas histórias situam-se na década de 70, e as protagonistas são adolescentes. No seu début, a diretora ditava o tom da abordagem que atravessaria todas as suas obras: o arrepio em sentir na pele as sensações impressas na tela, ao passo que lidamos com o paradoxo em enxergar tamanho sofrimento enquadrado num retrato tão cheio de beleza.
A perspectiva adolescente de As Virgens Suicidas começa com um soco no estômago. Cecília (Hanna Hall), aos 13 anos, conversa com o médico após uma tentativa frustrada de suicídio. Priscilla (Cailee Spaeny), por outro lado, vive o oceano de emoções do primeiro amor aos 14 anos.
Na faixa dos 14 – 15 anos, morria de vontade de ser adulta. Não sei bem o que se passava na minha cabeça, mas compartilhei com outras amigas um período onde tudo parecia cafona e infantil demais. Nessas brechas, alguns caras enxergam um caminho para apontar o quanto somos "maduras pra nossa idade" e caímos sem pensar duas vezes. Imagine então como foi para Priscilla. Morando com os pais na Alemanha, sem conhecer muita gente, e de repente tendo ninguém menos que Elvis Presley (Jacob Elordi) querendo conhecê-la melhor.
Ela não tarda em cair nos encantos e na lábia do homem dez anos mais velho. Independente da diferença de idade, é inegável a capacidade do primeiro amor em sugar a energia vital de qualquer indivíduo. Priscilla vive esse romance à flor da pele. Suspira pelos cantos na base de missivas e telefonemas cada vez mais espaçados. E quanto mais se envolve, mais se vê encerrada numa redoma.
Elvis convence os pais da namorada a certa altura e consegue levá-la à sua mansão no Memphis, sob a promessa de que enfim terão mais tempo juntos. Ignorando a realidade de um artista em ascensão que não pára em casa, pois possui uma agenda insana a cumprir. Em pouco tempo, Priscilla parece viver numa prisão domiciliar. Com a liberdade cerceada aos poucos pelos familiares de Elvis, consumida pela expectativa de quando poderá enfim passar tempo de qualidade com o amado.
O salto do fim da adolescência à vida adulta se dá por inteiro num contexto onde Elvis domina todas as escolhas e decisões de Priscilla. Ela deixa de existir um pouco para ser a projeção dos desejos do cara que dali alguns anos seria seu marido. É ele quem escolhe o estilo de roupa que ela deve trajar, elege a cor de cabelo perfeita, e a impede de ter um trabalho enquanto se ausenta. Tudo isso para ficar presa na mansão à espera de uma ligação de Elvis, que por vezes demora semanas para dar o ar da graça.
Embalados por mais uma trilha sonora assinada por Thomas Mars, nós também nos vemos entre os altos e baixos desse amor montanhoso. É escandalosa a capacidade de Sofia Coppola de nos colocar no lugar dos seus personagens de forma tão física. Enquanto assistia, tive momentos em que suspirei diante do Elvis de Elordi e quase fiquei nostálgica dessa maluquice ridícula que é o primeiro amor. Senti cumplicidade naquela relação que parecia crescer, mas também deixei o ódio se manifestar conforme o longa avançava e Sofia nos apresentava um Elvis nem tão doce assim.
Priscilla é um universo de sensações. Um pouco cafona, como pede todo romance projetado no cinema, mas atribuindo enfim protagonismo à mulher que por tantos anos se escondeu atrás da figura de Elvis. Cailee é primorosa ao retratar a estética do vazio em cena. Contemplativa, como tantos outros personagens da filmografia de Sofia, ela conta-nos universos inteiros de sensações só pelos gestos e movimentos do olhar.
Pouco tempo após assistir Priscilla, ouvi Pilar Quintana falar do seu romance Os Abismos num festival de literatura em Haia. Li A Cachorra ano passado e conhecia pouco sobre a trajetória profissional da escritora colombiana. Saí do evento com Os Abismos autografado em mãos, ansiosa para descobrir mais sobre as Claudias que protagonizam o livro.
O romance é narrado por Claudia, uma criança de oito anos. Filha de uma mulher de mesmo nome, vive com os pais num apartamento tomado por plantas em Cáli, na Colômbia. Claudia é curiosa e atravessa a fase da linha tênue, quando as perguntas das crianças ficam mais espinhosas. Nessa transição, aparece também a habilidade em captar nuances nas falas dos adultos. Ao longo do romance, observamos a inocência da narradora se esvair.
A Claudia-mãe não encontra um Elvis. Sua família vê, contudo, o casamento como uma escolha mais importante do que fazer faculdade. O seu sonho de estudar despenca num abismo, substituído pelo matrimônio e a vida fechada nas paredes de um apartamento onde sua única profissão passa a ser a maternidade.
Por intermédio das falas de Claudia-filha, entendemos a complexidade de ser mulher em tempos que se fingem tão modernos e mudados. Por mais que tenha afeto pela filha, Claudia-mãe luta diariamente contra a frustração de ter se tornado dona de casa. Enfrenta abismos internos ao passo em que se afunda ao adicionar mais uma camada nos seus conflitos pessoais. Ela se envolve com o marido da cunhada e se frustra quando é descoberta pela família.
A partir deste incidente, fecha-se cada vez mais e se recusa a ver a luz do dia. Alegando crises de rinite fortíssimas, definha aos olhos da filha, que não entende como uma alergia pode deixar a mãe moribunda. Acessar a visão da Claudia-filha fez-me pensar nos incontáveis momentos em que encarei a minha mãe com pontos de interrogações. Dói, e, ao mesmo tempo, emociona-me observar a narradora colecionando peças e fazendo as próprias interpretações dos fatos. Na construção dessa personagem, Pilar traduz como ninguém o dar-se conta de que a nossa infância está se dissolvendo.
Outro fator que me encanta neste romance é a aura macabra. A mata na qual o apartamento se transforma intriga Claudia-filha, assim como a paisagem selvagem da casa de férias onde os pais decidem passar uma temporada. Por vezes até me perguntava se o fascínio pelos abismos não tinha a ver com a obsessão de Claudia-mãe por celebridades que tiraram a própria vida. O movimento de tentar fazer mímica dos movimentos da mãe aparece em muitas passagens, reflexo comum de qualquer criança no seu processo de tentar entender adultos.
Quintana chegou a comentar que Os Abismos foi uma forma de se reconciliar consigo mesma e com a geração da sua mãe. No processo de escrita, ela conseguiu enxergar melhor como o meio acaba moldando as nossas decisões, mesmo quando não o faz de forma escancarada. Acessar a maternidade através da ficção ajudou Quintana a aceitar que nenhuma mãe é perfeita. E que isso não é e nem deveria ser problema.
Nos abismos de Quintana a beleza também dá as caras com frequência, mas no teor latino americano que me é tão caro. A cobrança obsessiva pela perfeição física está impregnada nas páginas, onde em muitas passagens observamos a mãe insinuando que a filha não é bonita.
Em Priscilla a estética está a serviço da história, atuando quase como personagem. Para Coppola era importante mostrar Priscilla enquanto a boneca viva de Elvis, que ele modelava a seu gosto. Priscilla engole esses barulhos e se rodeia de silêncios para atravessar essa relação sem tanto se ferir. A beleza e a precisão nos detalhes são ferramentas essenciais para não sucumbir e demonstrar eventuais fraquezas.
Vejo essas obras andando de mãos dadas, pois ambas apresentam personagens femininas que parecem superficiais num primeiro momento. Ao passo que se revelam, jogam na nossa cara que o ser humano é uma amálgama complexa e difícil de se entender mesmo. Mas somos muito maiores do que essa carcaça que todos observam e julgam compreender como ninguém.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Adorei a conexão entre o filme, que ainda não vi, e o livro, uma das minhas melhores leituras recentes ❤️