“Todo mundo que voltou deixou alguma coisa aqui. É por isso que se volta. Para buscar”
Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek
A busca é uma constante. Mesmo quando não há norte ou motivo declarado para tanta diligência. Não é regra, porém a maioria das pessoas já passou ao menos uma temporada fora do local de origem. Mudanças por conta do trabalho do pai ou da mãe, descobrir uma cidade ou mesmo um Estado novo para fazer faculdade, ou buscar oportunidades de trabalho. A vida vez por outra nos empurra à margem, forçando alguma movimentação.
Para quem perdeu as contas destes deslocamentos, o passar dos anos aumenta a transtorno ao explicar o motivo dos terremotos emocionais nos eventuais retornos. Assim como o que nos leva a sair, a natureza dos retornos pode ser variada. É comum a visita aos familiares que permaneceram, mas pode acontecer de ser o instinto bisbilhoteiro se manifestando.
Às vezes é só uma desculpa para escapar às obrigações cotidianas. Algumas camadas de busca pelo entendimento de quem somos e como o ambiente pode, ou não, ter ajudado a moldar quem nos tornamos.
Kênia, a protagonista de Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek, parece entrar na última categoria. Tomo a liberdade de apontar até certa curiosidade mórbida. A cidade onde passou a infância, Alto do Oeste, acabou submersa. Embora a personagem já demonstrasse desejo de partir, o local deu um jeito de forçar a despedida. Anos mais tarde, em decorrência da seca no Cerrado, a cidade submersa volta a exibir suas entranhas.
“Nas capitais, era a moça de origem pobre, uma aberração estatística que conseguiu dar certo apesar de ter vindo do cu do mundo, perseguida pela pergunta “De onde você é?” e pela impossibilidade de uma resposta que não passasse pelo surrealismo de explicar que cidades afundavam e que às vezes não dava tempo de fazer nada a respeito.”
Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek
Decidiu escavar essas ruínas, agora com outro olhar. A Kênia adulta, que viu a infância e a adolescência afundarem junto a Alto do Oeste, é agora fotógrafa. Já debandou por outros cantos, e encontrou um certo Facundo, amigo argentino e jornalista, no caminho. Ele acompanha-a neste retorno a Alto do Oeste, oferecendo a ponto de vista de quem é meramente curioso, em busca de uma boa história.
Kênia não foi a única a ter a ideia de revisitar o passado. Chegando lá, tropeça com figuras que ilustraram sua biografia. No meio dos reencontros, uma antiga professora passa-lhe, entre alguns objetos, um caderno de memórias. Nessas páginas, correspondentes a um exercício escolar de contar a vida, Tainara, amiga de infância de Kênia, esmiúça a própria existência.
Nesses relatos, observamos uma jovem que tenta decifrar dinâmicas familiares e qual posição social ocupa enquanto habitante daquele local. Acessamos também, por intermédio das letras de Tainara, uma visão detalhada de Alto do Oeste ao longo do processo de desaparecimento.
Ainda nos primeiros 20% de leitura, vi Sem Coração (2023), de Nara Normande e Tião, no Cinema do Dragão, em Fortaleza-CE. A protagonista, com nome curiosamente similar, Tamara (Maya de Viqc), me fez pensar na Tainara dos cadernos de Cidades afundam em dias normais. Tamara mora no Alagoas, onde passa tardes preguiçosas correndo pelas praias com o irmão e o grupo de amigos. No recorte do filme, ela está particularmente intrigada pela figura de uma garota apelidada ‘Sem coração’ pelos locais.
Essa curiosidade é um dos muitos pontos de partida que bagunçam as emoções de Tamara. Neste longo interlúdio da adolescência, visa decifrar o mundo que a cerca. Explorar a sexualidade, entender o impacto da consequência dos atos no coletivo, lidar com o gosto raramente doce da realidade de uma terra constantemente negligenciada.
A adolescência pode conter muito desse sentir hiperbólico, onde as coisas são visualizadas com lupa de aumento. As sensações são densas, como se a ausência de uma rotina adulta com trabalho e compromissos deixasse espaços vazios para dar proporções enormes aos mínimos acontecimentos. Isso tem a sua beleza, ainda mais no cenário escolhido por Nara Normande e Tião para contar essa história.
Tamara experimenta a folia de emoções em convulsão no período que antecede sua partida para Brasília. Dizer adeus ao que nos deveras conhecido para mover a vida a um espaço desconhecido assombra. No longa, parece de caso pensado, decisão tomada com suporte dos pais. Apesar disso, ela se vê carregada de incertezas.
Ir embora requer coração forte, ainda mais quando essa despedida carrega consigo o luto de enterrar uma fase tão cheia de símbolos como a adolescência. Tainara passa por processo similar. Diferente de Tamara, contudo, a sua saída de Alto do Oeste acontece por circunstâncias que escapam do seu controle.
A combinação entre filme e livro me tocou por acidente, e culminou noutro encontro inesperado com a adolescência numa sala de shows de tamanho médio em Tilburg, na Holanda. No palco, Garbage tocava as músicas que serviram muitas vezes de trilha sonora aos meus 13, 14 anos.
A desgastada versão de mim, que hoje já está mais próxima dos 35 e aprendeu, na marra, a dosar o sentir hiperbólico, até se identificou com algumas faixas. Só me restou rir do “when I grow up, I’ll be stable”, cuja ironia parece fazer ainda mais sentido hoje.
Muito se diz sobre acolher a criança interior, mas e a adolescente?
Essa fase penosa, onde se acessa a complexidade de consolidar uma personalidade para em seguida decidir os primeiros rumos da vida adulta. Quando os hormônios confundem os sentidos, e a pele e os cabelos parecem surtar para estar a par da desordem interior. Daí penso que ao menos na infância pode acontecer dos adultos nos acharem fofos. De achar graça na ingenuidade nas frases que saem das nossas bocas, e da nossa própria aptidão em não nos deixar afetar tanto por circunstâncias adversas que nos cercam.
Leituras e filmes ressoam nas vivências, e até ajudam a enxergar o que ficou para trás com o olhar livre de preconceitos. Berrar as letras que tanto fizeram sentido na adolescência num show também ajuda a fazer as pazes com feridas abertas de tempos que não voltam mais. Ainda bem.
É encontrar as nossas versões de tantos anos atrás e dar um abraço apertado ao invés de torcer o nariz. Sorrir, desgarrar os braços para então pisar firme no presente e afirmar-se mais segura para caminhar rumo ao futuro.
“Não acho que seja apego ao passado. Memórias pertencem ao futuro. É para lá que estou olhando quando faço esse trabalho todo, Facundo. Só se conta histórias para a frente.”
Cidades afundam em dias normais, de Aline Valek
Para além dos Estrangeirismos
A loucura feminina na literatura, oitavo episódio do podcast Palavra & Imagem
Ser mãe é padecer no paraíso?, por Lívia Reis
Aracne, a eterna tecelã, por Nara
Meu amigo Karl Ove, por Ariela K.
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Que texto bonito! Obrigada pela leitura generosa e por entrelaçar Tamara e Tainara nessa busca ❤️
Lendo aqui e lembrando da Luísa que saiu de casa aos 14 (com o apoio dos pais, assim como Tamara) e foi pra capital estudar, sonhando com o tanto de gente que iria conhecer. A mudança e não foi tão doce quanto eram minhas expectativas, teria ajudado se alguém tivesse me dado um toque, mas hoje já está tudo convertido em lembranças que ainda serão contadas "para frente". Obrigada pelo texto!
PS - eu tb amo Garbage!