What if all the world you think you know
Is an elaborate dream?
And if you look at your reflection
Is it all you want it to be?
Right where it belongs - Nine Inch Nails
[Edição #68]
Diante do precipício, a recusa. É hora de correr da queda. Navego nesse paradoxo onde me toma a urgência de afundar, ver até onde posso chegar caso siga nadando na lama. Será que encontro algo que nunca percebi antes? É um terreno muito familiar. Domino o modo de sucumbir, conheço cada esquina onde os incômodos se manifestam. No pavor de repetir o movimento, comecei a coreografar os gestos. Enganar o corpo mudando a dança. Aprendi que viver é ralar a cara no asfalto.
Acontece que já não combina mais comigo ter um corpo tomado por escoriações. Estou coberta de tatuagens porque trabalho no modo preventivo; garanti as minhas cicatrizes para não provocar ou deixar que os outros provoquem mais. Nesta realização, contudo, tentaram me encurralar. Afinal, se a sabichona é assim tão esperta para adotar um passo firme e ter visão de águia, é preciso testá-la. Provar que ela é mesmo apta a bancar essa força toda.
What if you could look right
Through the cracks?
Would you find yourself
Find yourself afraid to see?
Right where it belongs - de Nine Inch Nails
Quase venceram. Duvidei tanto quanto eles, porque no processo de acessar a podridão alheia olhar para dentro foi inevitável. É fácil comprar o discurso de ser dramática, exagerada, mimada. De não se esforçar o suficiente e nem saber ser carismática. Aproveitam as entrelinhas para elevar a discriminação ao ponto de anular de vez as suas competências profissionais. Achei mesmo que, no fundo, estudei demais para nada. Minhas experiências em diferentes instituições e países não valiam muito porque eu era uma grande fracassada.
Queriam que eu acreditasse que falhei.
Numa sequência do filme Niki, de Céline Sallette, Niki (Charlotte Le Bon) trabalha revirando peças de louça quebradas no ateliê quando percebe um espelho num canto. Tomada de raiva súbita, usa o martelo que tem em mãos para quebrá-lo. Essa fúria ressoou do lado de cá. De tanto dar ouvidos ao discurso alheio, só consegui observar minha imagem deformada. Depois de muito encará-la, vi o quanto se enxergar só pela lente do outro faz mal. Já estava em vias de me esquecer de quem sou para além de quem desconhece a maior parte da minha trajetória.
Niki de Saint Phalle foi uma artista franco-americana. Trabalhou como atriz e modelo por uma temporada, morando nos EUA. Na faixa dos 20 anos, casada com o escritor Harry Mathews e com uma filha pequena, Laura, mudou-se para a França. No filme, observamos Niki em meio a crises que lhe invadem de supetão. Dores de cabeça, angústias, palpitações. Essas sensações familiares a quem carrega um trauma e tem a cabeça meio cagada. No filme temos o entendimento que ela já passou por mais de uma internação em clínica psiquiátrica. Mas a virada de chave só acontece quando Niki junta umas pedras e folhas secas do jardim e os transforma em material para fazer arte.
Mais tarde, o médico também libera o uso de tintas e pincéis. De pouco em pouco, Niki dá vazão a sua tormenta em telas brancas. Em dado momento, conforme avança nas criações artísticas, ficamos sabendo que ela sofreu violência sexual do próprio pai quando era adolescente. Nos rompantes de expressar a sua indignação e buscar amparo, era contestada e vista como histérica. O trabalho dela foi recebido com resistência e criticado por não ser “arte de verdade”, ou por não apresentar uma técnica apurada. Em paralelo, ouvia de amigas que não passava de uma dona de casa que pintava umas coisinhas e, portanto, não poderia sair dizendo que era uma artista plástica. Era uma dona de casa com um hobby.
Resiliente, seguiu usando a arte como artifício de libertação. Talvez você já tenha visto algo de Niki por aí. Com o segundo marido, Jean Tanguely, idealizou a Fonte Stravinsky, que fica próxima ao Centre Pompidou, em Paris. É ela quem assina também as “Nanas”, esculturas imensas e coloridas que reproduzem corpos femininos. Soube mandar um grande “dane-se” às convenções e a quem menosprezasse as suas artes. Era alguém sem medo de sujar as mãos de tinta, argila, gesso, e até mesmo de pegar em armas de fogo. Não sendo possível atirar nos seus algozes, ela enchia sacos de tinta e atirava sobre telas. Grandona.
No último mês não preparei nada para publicar aqui. Não escrevi nenhum conto, tampouco anotei referências para o meu romance. Tudo parado. Sobrou mesmo para o meu diário. Usei a escrita ‘escondida’ de arma. Dessa vez a escrita não me salvou. Virou ferramenta e me ajudou a manter os pés firmes no chão apesar da vontade de afundar. Garatujas que me permitiram levantar da cama todos os dias, lavar o rosto, puxar uns pesos e cuidar do que ainda não se deteriorou.
Assistindo a cinebiografia de Niki de Saint Phalle, ponderei sobre a dor que vem junto a necessidade de transformar qualquer expressão artística em produto. A parte mais chata de executar algo categorizado como atividade artística é ter que se vender. Até se estabelecer um público é necessário divulgar, pedir uma oportunidade de ser visto. Tendo pessoas interessadas em acompanhar o seu trabalho, vem a necessidade de produzir mais para essas pessoas. É um ciclo sem fim.
Por vezes só queria mesmo sujar as mãos de tinta. Vomitar aflições no papel e largar num canto para secar. Escrever, bordar, desenhar, pintar… nenhum desses gestos deveria conter em si um ato de submissão ao gosto dos outros. Esses pensamentos me tomam enquanto percorro o relevo formado pela minha caneta nervosa dançando no papel. Esses traços são minhas ferramentas. Com a caneta em punho entendo minha força. Resisto.
Já virou lugar-comum dizer que artista só é produtivo quando está em sofrimento. Até faz algum sentido, porque partindo da necessidade de expurgar somos muito transparentes. E essa transparência gera obras cheias de honestidade. Algumas das pinturas mais lindas de Van Gogh nasceram nas fases de sofrimento mais agudo. Dito isso, reforço: quem faz arte não quer tomar medicação nem aumentar as horas de terapia semanais. Queremos cuca fresca para nos dedicarmos à criação livre, que não vem com carga de culpa ou de cobrança.
Elaborar a queda me ajudou a me reconhecer em meio a tanto ruído. Alguns tormentos não tem cura. Tornar-se artista plástica não apagou os traumas de Niki, mas trouxe-lhe armas para viver mais leve apesar dos incômodos. Escrever, publicando ou não, me ajuda a afirmar a minha existência. Ter um corpo, estar presente, embora por vezes tentem me apagar.
Continuo. Com minhas tatuagens, minhas cicatrizes escolhidas, com rabiscos que ninguém pediu para ver, mas às vezes jogo no mundo. Do lado de cá, entre uma folha e outra, tento não sumir. Ainda caminho e desvio das quedas de mãos manchadas e cabeça erguida. Nem sempre por bravura. Às vezes é pura teimosia mesmo.
Esticando a prosa
Ainda no eixo trabalho/carreira, te convido a ler a reflexão da Vanessa:
Outro texto levemente relacionado ao tema que me deixou pensativa foi este, da Surina:
Um café, por favor?
Oie! Tudo bem? Obrigada por ler este texto até o fim, e um agradecimento especial para quem me acompanha há um tempo. Se você chegou recentemente, escrevo sobre ser estrangeira em todas acepções do termo. Também abordo livros, cinema, música, e como eles costuram meu cotidiano.
Todas as edições de Estrangeirismos são gratuitas. Reorganizei minha bagunça e partir de agora teremos edições novas a cada duas semanas como outrora.
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Um cheeeiro, e até a próxima!