[Edição #56]
A moda dos escape rooms chegou tarde. Quando ouvi o termo pela primeira vez, morava em São Paulo e há pouco solicitara meu visto de estudante para fazer mestrado na França. Descobrir como funcionava na prática só aconteceria anos mais tarde, quando uma amiga comemorou o aniversário num escape room dentro da De Bagijnetoren*, em Delft, interior da Holanda. Participei de outros nos anos seguintes, e vi com alguma curiosidade o início dos jogos se dando sempre numa sala escura, ou com pouquíssima luz.
Perdi o receio de fracassar na empreitada quando entendi a experiência um pouco como a ficção no cinema ou na literatura. Nosso host dá algumas coordenadas e indícios, e gradualmente identificamos elementos que nos ajudam a achar fontes de luz. Alguém esteve por trás da criação do jogo e também quis que começássemos com um grande ponto de interrogação na cara para observar reações dos participantes conforme o enigma é desvendado.
Digo que no sábado peguei ingressos para assistir a quatro filmes. A reação das pessoas, mesmo de quem me conhece há anos, quase sempre aponta loucura. Que sou meio doida por passar um dia inteiro enfiada na sala de cinema. Acho curioso, pois ninguém se incomoda ao perder a noção da hora pulando de uma rede social a outra. Ignoram a imersão que só uma sala com um enorme telão, sem a barulheira de notificações no telefone e obrigações cotidianas, pode proporcionar.
Queria trazer reflexão profunda sobre ter lido 54 livros em 2024, ou até me gabar por isso. Um número expressivo se comparado com anos anteriores. Mas a real é que fiz minha reintegração pós-burnout e isso significou algumas horas livres para ler no primeiro semestre. Já quase não assisto séries, vejo pessoas com menos frequência do que antes. Naturalmente sobra mais tempo para leituras.
Passados quase cinco anos desde minha mudança para Holanda, estou familiarizada com o golpe violento da transição de outubro para novembro. Ainda interrompo trajetos de bicicleta para observar as folhas das árvores de perto, não sou tão coração peludo assim. Poderia ser só uma variação boba de vermelho e amarelo, mas o tom das cores se mistura e acende uma luz no breu que se instala sobre o país no fim do horário de verão.
Saí para comprar vitamina D contemplando minha resiliente molécula de serotonina. Nos últimos meses dividi a mesa do recreio com muita gente inspiradora, e esses encontros se tornaram lareira para os dias de temperaturas mais baixas e cabelos cada vez mais arrepiados.
Viajei no tempo ao ouvir Aline Valek e Brenda Navarro relatando um pouco de seus respectivos processos criativos. Depois dos trinta voltei à sala de aula, numa atenção devota por tudo que diziam. Com facilidade me envolvo na leitura de ficções, mas ouvir quem escreveu contar como chegou àquelas ideias tem um quê de magia. Pela primeira vez experimentei ser xereta sem constrangimento algum. Me senti na cabeça delas.
Os encontros com as autoras aconteceram separadamente, mas foram ambos parte de clubes de leitura. Mais tarde, em contextos menos intimistas, mas inspiradores na mesma medida, encontraria outras pessoas que escrevem. A cada início de novembro, Haia recebe escritores e músicos no Crossing Border. Para quem nunca esteve na FLIP, e só frequentou algumas edições da Bienal do Livro, esse evento bagunça as emoções ao dar espaço para muita coisa acontecer num breve fim de semana.
As mesas duram em média 30–45 minutos, e há sempre um mediador para cada convidado. Pela brevidade, chamei de ‘lições de escrita de bolso’. Saía de cada encontro com o caderno em punho anotando referências, sonhando eufórica num dia chamar a realidade da escrita como profissão de minha. O negócio de ser emocionada é que a empolgação toma proporções inesperadas, e julguei apropriado falar com aquela gente toda sobre meus tropeços na escrita.
Até disse a Stuart Murdoch que ele deve voltar para Haia daqui a uns anos para ir ao lançamento do meu livro (eu não tenho livro pronto!! Quem dirá um lançamento NA HOLANDA em vista!). Me deixaram entrar na rodinha, e voltei para casa feliz com conselhos e autógrafos de Jean-Baptiste Andrea, Olga Tokarczuk, Ariana Harwicz, e Stuart Murdoch.
O LIFF, por outro lado, foi mais discreto e, digamos, silencioso. Peguei duas sessões na presença dos diretores, que também me inspiraram a abraçar meus projetos e perder o medo de investir neles. Mas aproveitei o momento sobretudo para mergulhar no universo dos quatorze filmes que selecionei. Passei pela Nova Zelândia, Cuba, Polônia, Irlanda, Canadá.
Embora não fosse intencional, peguei muitos títulos cujos protagonistas são jovens adultos. Posso citar Good One, de India Donaldson, The Outrun, de Nora Fingscheidt, e até mesmo Anora, de Sean Baker. O tema que prevaleceu, contudo, foi o luto. Los Frikis, de Tyler Nilson e Michael Schwartz, A Real Pain, de Jesse Eisenberg, Look Back, de Kiyotaka Oshiyama, When the Light Breaks, de Rúnar Rúnarsson, e The Room Next Door, de Pedro Almodóvar, me jogaram em semanas de reflexão sobre o quão difícil é ser racional diante da finitude.
Conviver comigo pelos próximos meses significa ouvir esse amontoado de nomes de autores e filmes. Estar com a ‘minha turma’ desbloqueou a emocionada que mora aqui dentro. Ser fã é um pouco ridículo, mas assumo: essa entrega à cafonice é deliciosa. Em especial estando num ambiente seguro onde dificilmente alguém vai me julgar quando chorar só porque ouvi umas palavras bonitas.
Minha versão mais jovem ficaria muito feliz em saber de todas essas trocas, e me orgulho em poder deixar pelo menos esta parte de mim satisfeita.
No sufoco dos dias curtos e chuvosos, neste escape room que o inverno acaba sendo, busco nos livros e no cinema elementos que me ajudem a iluminar o caminho e a colocar lenha na fogueira. Essas iluminações mostram que nem sempre há soluções, mas que posso me virar bem com alternativas. São elas que me ajudam a manter a chama acesa.
*Delft fica a 55 km de Amsterdã. A Bagijnetoren sobreviveu como parte da fortificação medieval da cidade. Foi construída por volta de 1500. Era usada como ponto de observação. Em 1932, a torre foi restaurada e passou por algumas modificações mais tarde, em 1967. Hoje, o interior da torre é usado para o escape room citado no texto. A história se passa no século XVI e gira em torno da vida de William of Orange.
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Um "aglomerado" de arte! Que coisa linda de se viver!!