Escondendo-se à vista de todos
um showzinho intimista e reflexões sobre música e escrita
[Edição #30]
No meio de CDs e arquivos .mp3 no computador, cresci fascinada pela existência de gente que se dedica a fazer música. Desde a infância amava cantar pelos cantos, e tornei-me uma adolescente empenhada que reescrevia letras de músicas em meus cadernos até memorizá-las. A música também me levou às primeiras expedições no universo das palavras, e eu passava horas com o MacMillan aberto traduzindo meticulosamente palavra por palavra de canções em inglês.
Essa paixão era alimentada a cada vez que eu tratava o Disk MTV como um karaokê.
Uma vez exibiram o Unplugged do Nirvana, e aquela foi a porta de entrada para drogas mais pesadas. Em tempos pré-YouTube, encontrar vídeos de apresentações era uma tarefa árdua. Mas eu era jovem e investia o tempo abundante nessas expedições. Descobri outros unplugged, como o do Alice in Chains e do Pearl Jam. Logo ficaria sabendo que o Acústivo MTV era a versão tupiniquim do unplugged, adotando o de Cássia Eller como o meu disco de estimação. O ao vivo, embora gravado, teve os seus efeitos sobre mim. Logo me vi insistindo para que meus pais me presenteassem com DVDs de shows. Naquela época, o da turnê de Sleeping with Ghosts, do Placebo, era meu favorito.
Fui a algumas apresentações ao vivo durante a infância dos quais pouco me lembro. Estava sempre na companhia dos meus pais no mais próximo que temos de festivais no Mato Grosso do Sul, os rodeios. O primeiro grande show do qual tenho memória, contudo, ocorreu na minha cidade natal, quando Sandy & Júnior incluíram Campo Grande na turnê daquela época.
Desde então, não ter a possibilidade de ver minhas bandas favoritas “em carne e osso”, seja porque elas já não existiam, seja porque se limitavam a se apresentar nas grandes capitais, passou a ser fonte de descontentamento. Meus pais tampouco gostavam da ideia de deixar-me viajar sozinha, muito menos para ir a espetáculos. Só eu sei o tamanho do drama que foi perder Silverchair em 2003, marcado para um dia depois do meu aniversário.
Aprendi a me virar com a cena roqueira pantaneira, onde qualquer varanda virava palco para shows. O Café Moinho* era meu Cine Joia**. Era bom ver tantas pessoas do Cerrado produzindo o próprio som e se apresentando que nem as bandas que eu via pela telinha do computador.
Por essa perspectiva dá para dimensionar o luxo que foi mudar-me para São Paulo aos dezoito anos. Nunca mais sofri com anúncios de shows, pois passaram a ser uma possibilidade. A lista de apresentações de artistas brasileiros e estrangeiros aumentou, fui aos meus primeiros festivais e dei um check feliz numa infinidade de apresentações que nunca imaginei que veria um dia. Vale frisar que eram outros tempos onde um ingresso não custava os olhos da cara. E nos primeiros anos ainda tinha o bônus do acesso à meia-entrada.
A pandemia começou três meses após minha mudança à Holanda. Meu último show antes do confinamento foi no Ziggo Dome, uma das maiores salas de eventos do país. Vi Tenacious D com a casa cheia. Três semanas mais tarde pensava na apresentação como um grande delírio, e me perguntava se um dia poderíamos voltar a dividir espaço com um amontoado de gente esgoelando ao som de música ao vivo.
Os shows voltaram a acontecer aos poucos em 2022. Ainda me dava aflição, sentia-me criminosa por não aquietar o facho e não aguentar esperar a situação se estabilizar para começar a comprar ingressos. Não soube dizer não a Caetano Veloso, tampouco a Lorde ou Phoebe Bridgers. E a lista foi aumentando desde então.
Só tive dimensão do quão sufocante o confinamento pode ter sido para alguns artistas quando Leslie Feist se embrenhou no meio do povo na Ronda, uma das salas de show do TivoliVredenburg, em Utrecht. Ela buscava aquele contato, queria estar mais próxima de nós para nos contar o que viveu nesses anos de isolamento. Quando ela começou a ajeitar o celular no suporte do microfone e conversar conosco, senti-me como se estivesse na sala da casa dela.
Como tantas coisas na vida, a prática nos leva a moldar experiências segundo nossas percepções de mundo. Vejo muito disso no design dos palcos e o jeito como os artistas se colocam em cena. Entre o Broken Social Scene e a carreira solo, Feist conta com anos de estrada e provavelmente queria que seu retorno aos palcos fosse especial. Multitudes, lançado em abril deste ano, é o sexto álbum da sua carreira. Para além da voz, quem a ajudou a criar a identidade visual do álbum, igualmente impressa na turnê europeia, foi o artista canadense Colby Richardson.
Tanto nos videoclipes quanto durante o show, Feist vira um pouco dessas multitudes. Nós a observamos se multiplicar e fragmentar no telão enquanto canta sobre sua balbúrdia mental. Para além das questões que talvez já carregasse consigo quando a pandemia começou, algumas camadas se adicionaram à vida da cantora durante o confinamento. Enquanto descobria a maternidade, viveu também o luto após a morte do pai no início de 2021. As canções que compõem o Multitudes refletem ambas temáticas carregadas de melancolia e delicadeza, bem à moda de Feist, e do jeito que eu, grande fã deste trabalho, gosto.
Periwinkle, cobalt, magnolia tree
Flee 'til you're free, and stay loving me
Some people have gone and the people who stayed
Will eventually go in a matter of days
Become the Earth, de Feist
O show foi organizado para acontecer em dois palcos. O primeiro ficava no meio do público, onde Feist cantou as primeiras sete músicas sozinha. Enquanto fã, não estava preparada para um acústico com apenas voz e violão. Tampouco me lembrava da facilidade da artista para estabelecer conexão com o público e quebrar o gelo. Apesar de ter um texto pré-definido antes de entrar em cena, ela de fato parecia disposta a criar trocas com o público.
Essa “quebra da quarta parede” me pegou. O simples ato de falar e nos instigar a participar a humanizou, e tirou aquela camada de “obrigação” de performar e apenas dar cabo a mais um compromisso da agenda de artista. Colby integra o design de cena disfarçado de voluntário. Ele tomou o controle do celular com o qual a artista entrou em cena para deixa-la mais flexível a transitar entre os palcos e o público. Ele se embrenhou no meio do público e passou a nos filmar durante a apresentação. Frames de tênis, casacos de lantejoulas, anéis e até mesmo o próprio chão do Tivoli foram projetados no telão.
Nesta primeira parte a identidade visual do álbum fez para mim ainda mais sentido. Atravessar diferentes etapas ao longo dos anos e encarar a vida adulta é se desdobrar nas multitudes de sentimentos conflituosos que nos arrebatam diariamente. Se para alguns basta lidar com essas questões em silêncio, outros preferem buscar algum entendimento por meio da escrita, música, ou qualquer outra forma de arte. Faz muito sentido, portanto, que um show desses tenha me deixado aos prantos.
Everybody's got their shit
But who's got the guts to sit with it?
Everybody's on their own
So that way we're never alone
Hiding out in the open, Feist
Uma das maiores forças da arte é a liberdade que ela nos dá para criar. Por meio da criatividade qualquer cantinho se transforma em imensidão. A transição da apresentação se deu ao som de I took all of my rings off, do álbum novo, onde Feist transformou o espaço num imenso jardim. No meio do público, cavou um buraco para plantar aneis invisíveis como se fossem sementes. Ela os deixou para trás para arrancar a cortina branca e revelar a banda, nos levando ao segundo set do show, onde revisita faixas dos álbuns antigos.
Foi um show montado para acontecer daquela forma, mas seria impossível não me sentir conectada com Feist ao longo do concerto. Ver poesia e movimento nos gestos, na voz e nas melodias só me deu mais vontade de investir tempo na minha arte de estimação. Escrevo pelas paredes desde pirralha, compartilho parte disso online há mais de uma década. E não há um dia sequer em que não caia de amores pela força das canetas deslizando sobre o papel.
Apesar de tanto amor, querer viver de escrita ainda é algo que me assusta e encaro como impossibilidade. Carrego também frustrações tão grandes quanto o universo, às vezes parece tolice essa entrega ao papel. Sentir-se mediana diante da dificuldade em transformar o que tá na cabeça em texto me parece um lugar comum para quem escreve.
Sou do time previsível que acredita que a arte pode nos salvar. Nos momentos de dificuldade, quando encaro o texto à espera de edição e acho tudo uma merda, tento me agarrar ao sentimento que esteve comigo enquanto ainda extraía o texto. Em posse de minhas canetas, tudo é possível e o céu é o limite. Independente do resultado, passar pelo processo de escrita me dá uma força descomunal.
Ver Feist pela segunda vez acabou reforçando esse movimento. A energia de ouvir músicas que me acompanham nos fones de ouvido ao vivo parece contagiar esse coração inquieto. Arte escoando tudo aquilo que a gente apanha para dar forma é bonito e único demais.
É na intimidade que me confidencio ao papel, mas a partir do momento em que publico, deixa de ser só meu. É íntimo, às vezes desconfortável e de abordagem difícil. Porém a pequena parcela que se torna pública neste espaço é um esconder-se à vista de todos. Por intermédio dessa ação me livro de parte da dor. E por mais insano que pareça, neste movimento me vejo mais forte e me mantenho acolhida.
Everybody's got their shit, but who's got the guts to sit with it? Encarar os altos e baixos de insistir na própria arte exige coragem, mas ao menos não me sinto só.
Oie. Como você está?
Estrangeirismos é enviada a cada duas semanas, normalmente às quintas. Esse texto estava pronto no dia 12 de Outubro, mas padecia de edição. O outono chegou com tudo, os vírus voltaram a circular, a ausência de luz também fez seu espetáculo. O mundo segue ruindo, e minha garganta, assim como o cérebro, não aguentaram o tranco. Atravesso uma fase pessoal delicada, e por isso fico feliz em ter conseguido me sentar e ter uma conversa séria com esse texto agora.
Se você chegou ao fim do texto, obrigada. Qualquer leitura é carinhosa e, conforme disse anteriormente, ajuda a me sentir acolhida. Caso se sinta confortável para tanto, me conte o que achou?
E se você gosta de Feist mas não ouve nada dela há algum tempo, recomendo o mini-concerto do Multitudes. E essa apresentação no Blogothèque também, que é minha favorita.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Seu texto me fez voltar nos anos 90, quando assistia os melhores da semana na multi show, que misteriosamente funcionava na tv de casa somente neste dia e local. Mas ao contrário de você, nunca nem cogitei que a possibilidade de assistir algum daqueles cantores ao vivo (porque não existia mesmo). Me pego pensando nisso, no tamanho do nosso mundo lá nos findos 90 e agora, qual a distância entre os sonhos....
Que texto! Vários temas que conversamos no nosso almoço. ❤️ Já escrevi antes e repito: sempre bom ler sobre suas experiências de assistir shows.
Agora estou ainda mais arrependida de ter perdido esse show.
PS: O acústico da Cássia também era o meu acústico de estimação. Ninguém aguentava mais esse disco lá em casa por minha causa. hahaha