E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento
Sigo mais sozinho caminhando contra o vento
Caetano Veloso - O Estrangeiro
Era inútil ao meu cotidiano, e por algum motivo tornou-se o mais sonoro souvenir dos primeiros meses de 2015. Enquanto morei em Besançon não precisei de transporte público. Cidade pequena, escola perto de casa, amigos instalados nas imediações, fatores que me levaram a me deslocar exclusivamente a pé. Ainda assim ouço o barulho do tramway, que chamaremos aqui de bonde, se aproximando como se fosse hoje. Os sinais de alerta dos bondes são parecidos em diversos países: um som similar ao de sinos batendo por alguns segundos. Todavia o de lá tinha um quê particular e assim que encontrou lugar na minha memória.
Desembarquei em temperaturas quase negativas que terminaram em neve, e vivi minha primeira transição significativa de estações meses mais tarde. Entre janeiro e maio espiei as transformações da natureza. O cenário mais marcante daquele meu primeiro inverno francês era a sequência de árvores nuas com aparência fragilizada. Os galhos se contorciam em direção ao céu, carregando por vezes o orvalho, e criando um balé involuntário toda vez que chovia.
No mês de abril a nudez dos galhos foi convertida em uma abundância de verde. Folhas tomaram conta de tudo para desabrochar variedades de flor de arrebatar o peito em maio. Os cheiros mudaram, as ruas ganharam um tom vívido fosse pela natureza em polvorosa ou pelas pessoas cada vez mais confortáveis em estar do lado de fora. Até o volume parecia ter se potencializado conforme a fauna se alterava em busca de temperaturas mais amenas.
Num movimento inverso, enquanto árvores e gramados se cobriam, eu me despia. Conforme as temperaturas subiram, tirei minhas camadas e coloquei meus vestidos e saias para passear. A natureza quebrou esse galho de me deixar mais leve enquanto ela, em contraponto, se sobrecarregava.
Em suma, vivi um pouco do inverno e da transição à primavera enquanto estudava francês e validava tudo que havia lido sobre a cultura francesa em tempo real.
As circunstâncias que me levaram aos confins de Franche-Comté decorrem dessas confianças meio cegas que nós mal sabemos explicar. Embarquei no desejo alheio sem ponderar. Tinha frustração acumulada após ter meu dossiê de candidatura a diferentes universidades recusado catorze vezes, e passar quatro meses longe da terrinha, contemplando uma realidade diferente da minha, era uma ideia tentadora.
Fui com bagagens demais e expectativas de menos, pois havia desgastado o coração projetando os tais dois anos estudando cinema na terra dos Lumiėres.
Havia um quê místico neste intercâmbio. Quiçá uma sorte grande que me caiu no colo abençoando a ignorância em ler o mínimo sobre Besançon e a escola antes de desembarcar do trem.
Era ingênua para alguém que nunca havia passado tanto tempo fora, e a escrita esteve comigo em cada dia desta aventura. Foi minha estratégia para digerir vivências e ter um registro físico de como percebi o mundo ao longo daqueles quatro meses. Meus cadernos ficaram recheados destes fatos. Alguns viraram posts no meu finado blog, e a experiência toda me impulsionou a criar uma newsletter. Nela contei causos, compartilhei dicas de livros franceses, elaborava umas grandes saladas com tudo que sobrou na geladeira e enviava quando sentia vontade.
Meu séjour foi a cereja do bolo da minha condição estrangeira. Uma cereja bordeaux, reluzente, encontrada em abundância nos mercados franceses durante a primavera. Daquelas que chegamos a ter dó de comer de tão bonita.
Me sentir estrangeira é um sentimento antigo. Essa coceira de me encontrar deslocada da realidade, como se não tivesse sido convidada para participar do movimento da vida, me é familiar desde cedo. Para uma curta temporada com data para acabar não me cabia o rótulo de imigrante ou expatriada, mas o de estrangeira me convinha com maestria. Me vesti dele e me senti confortável, como aquele vestido da loja pelo qual nos apaixonamos e cremos ter sido feito sob medida.
Estrangeiro contém o estranho, e eu, que sempre me vi tão esquisita, me deleitei ainda mais com este complemento. Estranha estrangeira, como no título do livro de Caio Fernando Abreu. Brincava com as palavras e com minha existência, me reinventava em outras línguas, descobri novos eus e novas possibilidades.
Meu período bisontino foi pura luz, uma caixinha de epifanias que encheu meu caminho de sinais devidamente colhidos. Tracei rotas baseadas nestes sinais para hoje, seis anos mais tarde, acolher uma dessas preciosidades que abandonei no meio do percurso.
Respondi aos sopros da vida e achei por bem desencaixotar meus estrangeirismos, e te convido a me acompanhar nesta jornada.
Nesta versão 2.0 da newsletter falarei sobre como lidar com os riscos da minha condição estrangeira.
Vamos juntos?
A foto linda é da Meiry
Nota de esclarecimento:
Long time no see, caríssima pessoa que me lê. É um prazer estar de volta. Se este texto brotou na sua caixa de entrada, não se assuste. Sou a mesma Lidyanne, Lidy com isso, que disse tchau em abril de 2019 e nunca mais deu as caras. O servidor mudou, a criatura é a mesma. Presumi que quem se inscreveu e acompanhou minhas cartas no passado ainda teria interesse, mas caso você não queira me ler na tua caixa de entrada, tem um link no fim do texto para cancelar a inscrição. Vá sem receio, não guardo mágoas. Entretanto, caso goste e queira compartilhar com outras pessoas, sinta-se à vontade.
O Estrangeirismos é um projeto temporário onde, em quatro capítulos, vou me servir de crônicas para discorrer sobre morar no exterior. Cada edição será enviada no último dia útil do mês.
Indo na contramão de quem abandonou o universo blogueiro, recuperei meu espaço no ano passado e vez ou outra solto textos aleatórios sobre temas diversos por lá. Se quiser me ler falando sobre outros assuntos, basta clicar aqui.
Apêndice
Breve adendo para potenciais curiosos
Se Besançon despertou sua curiosidade, escrevi para meu finado blog sobre a cidade e minhas primeiras impressões nestes dois posts. Eles foram redigidos enquanto estava por lá, portanto são, como os jovens curtem nomear, emocionados.
Quando disse “na terra dos Lumières”, minha referência não era exclusiva à França. Os irmãos Lumières, Auguste e Louis, conhecidos como pais do cinema, nasceram em Besançon. Lidyanne também é cultura.
Se você tem interesse ou sabe de alguém em busca de cursos de francês no interior da França, estudei no Centre de Linguistique Appliquée (CLA), que recomendo sem pestanejar.
Antes de iniciar o curso, já tinha uma base da língua. Estudei na Aliança Francesa de São Paulo, na unidade Jardins-Trianon, entre 2010 e 2015 e, neste espaço de tempo, tive uma ótima experiência. Cursos de língua online não me apetecem, mas imagino que eles ofereçam esta opção hoje em dia devido à pandemia. Você é professor/professora de francês e gostaria que eu divulgasse seu contato na newsletter? Me dê um toque!
Leu este post e ficou com vontade de ouvir uma música francesa? Ouça Les Oiseaux, de Pomme.
Me conta o que você achou deste texto? Você pode responder por aqui mesmo ou me mandar uma mensagem à parte no lidyanneaquino@gmail.com !
Um beijo e até a próxima edição!
Hopefully the next one will be written in English...