Estrangeirismos #13 - Quanto cabe nas fotografias?
'Os Anos' e o olhar crônico de Annie Ernaux
As idas à casa dos meus pais se espaçaram conforme as responsabilidades aumentaram. São Paulo devora quem nela põe os pés sem a menor sutileza, e o efeito foi ainda mais perceptível quando estava prestes a me formar e buscava um espaço no mercado de trabalho. As passagens caras pouco contribuíam. Desde então, minhas visitas à Cidade Morena pareciam passar num piscar de olhos. Pegava alguns fins de semana, fazia a ponte num feriado ou outro. Tamanha transitoriedade impactou as memórias, que ficaram cada vez mais fragmentadas.
Existe isso de memória intacta, perfeita? Dá para confiar nela enquanto uma reprodução exata dos fatos? Mergulhar nas lembranças tem gosto agridoce de desconfiança. Desde a mudança de continente, criei o hábito de rever fotografias da infância e adolescência quando estava na casa dos meus pais. Por questões geográficas (e pandêmicas), a distância entre uma ida a outra se alargou expressivamente, e folhear os velhos álbuns de capa amarela da Kodak tornou-se um movimento de conexão com minhas origens. Quando sobrava tempo, incluía leituras de antigos diários no balaio e tentava me lembrar das sensações das cenas descritas naquelas páginas. Combinar imagens e fotos é uma das formas mais acessíveis de viajar no tempo.
Afora toda beleza em construir uma trajetória pontuada por fotografias e relatos em diários e agendas antigas da Pascoalina, penso no movimento da memória ao criar pernas partindo da imagem impressa no papel. Combinando as fotos, minhas parcas lembranças e as memórias de quem estava por trás da câmera, compomos uma imensa colcha de retalhos onde tudo se mistura. E, embora a memória seja por vezes traiçoeira, serve de desafogo a encher o peito de nostalgia pelas vivências do passado.
Para além do aspecto pessoal, a fotografia é também documento, registro histórico. Assim como identificamos o período em que uma foto foi tirada baseado na lembrança, os elementos dão o tom, pequenos spoilers do momento em que o registro foi feito. A mercearia perto da praça, que hoje já não existe mais; a gigante escultura de um sobá na entrada da Feira Central com a pintura desgastada pelo sol, um outdoor que igualmente cedeu às altas temperaturas e aparece desbotado. Ou mesmo traços do tempo traduzidos em cortes de cabelo estilo Chitãozinho & Xororó, os personagens da Looney Tunes estampando as roupas, ou as pulseirinhas feitas de miçanga do final dos anos 90.
Fotografias carregam tantas vidas num registro singular.
Por isso Os Anos, de Annie Ernaux, me virou do avesso. Não o li numa sentada, conforme ocorreu com outras obras dela; pelo contrário, precisei de tempo e pausas entre uma página e outra. Creio ser um dos livros mais longos da autora. Na edição francesa, tem 254 páginas. Resumir tantas vivências numa única obra deve ter sido penoso, e por esta perspectiva o livro parece até curto demais. Ernaux é primorosa na arte de ficcionalizar a própria existência. Demandou calma e atenção, mas me deixou saudosa dessas outras vidas que povoam a obra. Como se as histórias contadas naquelas páginas fossem também um pouco minhas.
Embarcar nas memórias de Ernaux foi também tocar as entranhas da França, este país com o qual flerto há tantos anos. Me deliciei com a familiaridade de diversos elementos, como se a terra da liberté, égalité, fraternité também me pertencesse em certa medida.
A experiência da leitura para mim é toda sobre isso: viver na pele algo que nunca nos pertenceu e nos apropriar com os nossos recursos. Ernaux me lembrou que não preciso sangrar as mãos tentando criar universos ficcionais. Tenho à minha frente um baú transbordando com histórias ocorridas e tão dignas de serem contadas quanto um enredo completamente imaginado.
Posso partir da realidade e selecionar quais lentes me parecem mais interessantes para transformar essa amálgama num registro concreto e escolher os filtros mais convenientes. Um fragmento de tantos outros que talvez faça parte de algo grandioso no futuro.
“Sauver quelque chose du temps où l’on ne sera plus jamais"
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Um cheiro e até a próxima!
Lidyanne, estou devorando as suas newsletters e amando sua escrita.