Estrangeirismos #16 - O coração não precisa de GPS
Rasgando mapas e percorrendo as esquinas das memórias de 2015
Não adianta fugir
Nem mentir pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro, sempre
[Lulu Santos - Como uma onda]
Quando Caio chegou no apartamento que alugamos para o passeio, dei-lhe tempo para se acomodar e logo perguntei por onde gostaria de começar. Sugeri o Bar de L’U, diminutivo para Bar de l’Université, recurso criativo para dar nomes pouco comum para a França, mas que poderia ocorrer facilmente nos Países Baixos. Tomamos a nossa primeira cerveja juntos em Besançon num pub que sobreviveu à pandemia, mas foi o Bar de l’U quem elevou nossa experiência. Virou quase uma segunda casa onde muitos cafés, cervejas e conversas aconteceram.
Chequei se o local ainda existia e o horário de funcionamento por precaução e logo o desafiei a irmos até lá sem olhar o endereço e usar o mapa. O coração não precisa de GPS - chegamos sem muita hesitação. Empurramos a porta e caímos em 2015, como se o tempo não tivesse passado. As pautas em discussão, num primeiro momento, pertenciam ao presente. Não nos víamos há meses e havia muito papo a se colocar em dia. Apesar da lufada de viagem no tempo, aos poucos nos familiarizamos com os aspectos “2023” das nossas vidas no meio daquela cápsula temporal.
Montamos um quebra-cabeça surrealista do presente combinado com quem éramos oito anos atrás, ao mesmo tempo em que redescobríamos esta pequena cidade no interior da França. Deixamos o copo da nostalgia transbordar a cada local identificado, e dissecamos um punhado de memórias ao longo dos nossos quatro dias de férias.
Estávamos em momentos diferentes das nossas vidas quando desembarcamos na gare de Besançon-Viotte em janeiro de 2015. Tínhamos, no entanto, alguns projetos em comum e almas inquietas por mudanças. Havia igualmente um elemento de inocência. Apesar dos pés no chão, sonhávamos muito ao longo de infinitas horas de sono. Quiçá fosse efeito do frio e do conforto do edredom quentinho, mas naquela época dormíamos feito pedra e por horas a fio.
Apesar do apego à cama, ambos éramos fiéis aos nossos compromissos com o Centre de Linguistique Appliqué, onde raramente perdíamos aulas. Para além do francês, estudávamos um pouco de tudo. Da minha parte, fingi costume nas oficinas de escrita criativa, mergulhei no universo literário francófono e ainda consegui tempo para partilhar o que até então sabia sobre cinema e aprender novas coisas em troca.
No tempo livre, exploramos outros cantos da região de Franche-Comté e descobrimos fragmentos de outros países, às vezes juntos, às vezes separados. No entanto, sempre encontrávamos tempo para nos sentar diante de copos de cerveja belga e conversar, tentando dar algum sentido a essas experiências.
Meu objetivo principal era aprimorar o meu francês e preparar-me psicologicamente para me candidatar novamente a um mestrado na França, mas acabei ganhando uma amizade para a vida toda. Somos a prova de que introvertidos podem se entender com suas respectivas peculiaridades.
Sentados na mesa do apartamento na última noite deste reencontro, no sábado passado, repetimos uma tradição de 2015 que envolvia comer paninis cheios de Comté derretido e compartilhar uma barquette de batatas fritas com molho samurai. A barriga cheia e as cervejas nos deram a ideia de reler a primeira edição da newsletter que enviei em 2017, quando ainda usava outra plataforma.
No início, fiquei um pouco constrangida com as primeiras frases, mas logo deixei isso de lado e encarei como um simples exercício de leitura. À medida que continuávamos a ler, rimos muito com as memórias evocadas pelas linhas e nos impressionamos com a maturidade que a minha escrita adquiriu com o passar dos anos. A vantagem de ter deixado tantos pedaços de mim na internet é poder revisitar tantas vivências e sentir orgulho das pequenas vitórias acumuladas ao longo do tempo.
Já dizia Nelson Ned, tudo passa, tudo passará. Não há ferida nesta vida que não cicatrize. Reencontrar as minhas pegadas pelas ruas de Besançon foi puro regozijo. Carregava algumas dores que se potencializaram quando retornei ao Brasil naquele 2015, e o processo de recuperação foi penoso, mas lutei e saí dessa fortalecida. Com o privilégio de poder perceber-me tão grande e celebrar inúmeras conquistas com quem esteve ao meu lado e segurou a minha mão ao longo de fases distintas.
A vida hoje é boa, as angústias são outras, mas esta viagem pelas esquinas das memórias de 2015 foi um refresco. Vento na cara e o alívio em saber que minha inocência talvez tenha sido enterrada, mas minha capacidade de sonhar e conquistar objetivos ainda mais ambiciosos segue intacta.
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) Estou devendo algumas respostas tanto aqui na plataforma quanto por e-mail - comentários que recebi como um abraço apertado e inspiraram-me com temas para edições futuras. Prometo que vou tirar um tempinho neste fim de semana e provar que a resposta demora, mas chega! :)
Um cheiro e até a próxima!