Ao longo do primeiro ano morando na França, tive variações de um sonho recorrente onde ‘esquecia’ minha bolsa de propósito no transporte público. Sem querer querendo. Era comum ter sobretudo os ônibus municipais do Terminal Bandeira, de São Paulo, como cenário. Lembro-me de descer com a consciência pesada, enquanto outros passageiros me encaravam incrédulos. Quando enfim descia, sabendo não ter mais volta, ficava puta comigo mesmo. Minha preocupação? A identidade.
Como poderia largar minha identidade para trás sem apego algum? Curioso ressaltar que a imagem imediata era justamente do verde-claro do RG brasileiro. Nunca do passaporte, tampouco do posterior titre de séjour. Na sequência, os sonhos viraram uma imensa maçaroca que misturava português e francês e nada fazia sentido. Perdi a conta de quantas vezes acordei desesperada em busca da minha carteira e da famigerada carteira de identidade.
Anos mais tarde, passei à etapa de dividir um teto com meu parceiro francês na Holanda. Neste ponto tudo desandou. A vida não para quando mudamos de país, porém parece abrir a porteira de uns tantos multiversos. Como se passássemos a viver várias realidades paralelas enquanto tentamos manter a ligação a com a nossa identidade intacta.
Nunca mais sonhei com a bolsa esquecida de propósito no ônibus. Creio ter rolado um Kung Fu misturado com feng shui mental, fiquei experiente neste lance de transitar entre realidades paralelas com naturalidade. Contudo, nunca mais consegui encerrar uma frase inteira em uma única língua.
Nos primeiros minutos de Everything Everywhere All at Once, Evelyn e Waymond vivem uma sequência que representa um episódio comum no meu cotidiano. A natureza da conversa varia, mas ela respinga nas línguas maternas e nas línguas que incorporamos à nossa realidade ao longo dos anos.
Viver em terras estrangeiras, com o perdão da comparação previsível, é uma imensa Torre de Babel. Dentro dela, percorro realidades variadas e me divirto (às vezes rindo para não chorar) tentando me encaixar em algum canto ou fingir que tiro a parte da integração de letra.
Everything Everywhere All at Once brinca de forma inteligente com essa questão do que é e o que poderia ter sido. É natural ao ser humano fantasiar com acontecimentos decorrentes de nossas decisões. Passar por uma situação ruim ou ver um plano se frustrar me leva a pensar se não teria sido melhor agir de outra forma. Assumindo que repensar minhas atitudes mudaria o curso das coisas, pregada nesta ilusão de que tenho ALGUM controle sobre a vida. Basta uma breve crise existencial para cair na tentação de pensar que tudo estaria às mil maravilhas caso nunca tivesse partido.
Sendo o cinema uma experiência subjetiva, o estatuto imigrante do casal protagonista me pegou em dobro. Nem sempre é fácil me dissociar da vida que deixei para trás. O meu ‘e se?’ gira em torno da visão onde o Brasil ainda seria minha residência e o que teria feito do meu futuro profissional naquelas terras.
Quando a ferida lateja, volto-me para um dos diálogos iniciais do filme, quando o Alpha Waymond diz:
My dear Evelyn, I know you. With every passing moment, you fear that you might have missed your chance to make something of your life. Well I’m here to tell you every rejection, every disappointment has led you here. To this moment. Don’t let anything distract you from it.
Estou distraída da escrita. Não abri meu diário uma única vez em março, não escrevi nem uma frase solta no bloco de notas. Há duas semanas, quando deveria enviar mais uma edição da newsletter, comecei a escrever sobre menstruação e desisti com um texto inacabado. Passei por algumas circunstâncias no trabalho que me colocaram neste local de questionamento e me paralisaram.
Ser imigrante é e sempre será uma estrada esburacada, cheia de remendos. Terá sotaque acentuado, erros gramaticais, declaração de imposto de renda em uma língua que entendo pouco, julgamentos por atitudes que possam parecer estranhas à cultura alheia. Revi Everything everywhere all at once no começo desta semana porque precisava deste lembrete de que a vida tem essa energia de corda bomba, mas nós sempre encontramos uma forma de manter o equilíbrio, visualizar o horizonte com mais clareza, e dar passos assertivos.
Aos tropeços, depois da crise, tento lavar o rosto com água fria, respirar fundo, e observar o caminho percorrido com admiração. Consultá-lo quando for necessário, mas parar de me distrair do momento presente.
Parar de sonhar com a identidade perdida não foi por acaso.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!
Que news mais linda!!!! Me emocionei tanto com o sonho de deixar a identidade para trás. Traduz muito do que tenho sentido (acabei de me mudar para a Austrália para fazer meu PhD). E eu achei o ato-falho (ou melhor, ato-certeiro) "essa energia de corda -bomba-" maravilhoso. A corda é bamba e é bomba. Escorrega, exige equilíbrio, dá medo, e ás vezes explode. Muito obrigada por compartilhar tua escrita!! Um abraço carinhoso
Que texto!! ♡♡ já estou procurando o filme pra ver