Estrangeirismos #18 - O inusitado (en)canto dos esquisitos
Um lugar seguro pra galera estranha
Enquanto brinca com outras crianças no parque, a pequena Keiko Furukura encontra um pássaro morto. Todos estão tristes, pensando na possibilidade de fazer um enterro simbólico para o bicho. Furukura, por sua vez, pergunta à mãe se não podem prepará-lo para o jantar. A família precisa comer alguma coisa de qualquer jeito, e o bicho já está morto mesmo, então por que tanta comoção em torno da sua morte? Por meio dessa cena, um recorte da infância da narradora e protagonista de Querida Kombini, de Sayaka Murata (traduzido por Rita Kohl na edição brasileira), conhecemos mais do universo da personagem e a sua forma digamos peculiar de perceber o mundo.
Furukura vai na contramão de muitas convenções sociais. Não se importa em morar num apartamento pequeno, tampouco pensa em progressão de carreira. Embora tenha se formado na universidade, decidiu continuar no trabalho que arranjou quando iniciou os estudos. Aos 36 anos, ela celebra 18 anos como funcionária de uma loja de conveniências (conhecidas no Japão como Kombinis), sem nunca ter se envolvido amorosamente com alguém e sequer pensar na possibilidade de ter filhos.
Conforme a leitura avançava, fiz algumas conexões com duas autoras sul-coreanas. Li A Vegetariana, de Han Kang, e Kim Ji-young: Born 1982, de Cho Nam-Joo. São narrativas curtas e secas, cheias de uma capacidade um tanto assustadora de tocar em assuntos incômodos sem nenhuma sutileza.
Ambas autoras soltam uma reflexão forte numa única frase, fechando o capítulo, para deixar qualquer leitor desgraçado da cabeça e pedindo uma pausa antes de prosseguir com a leitura. Com Sayaka Murata a experiência foi bem parecida. As atitudes de Furukura ao longo da infância me chocaram um pouco, é fato. Porém, contrariando as expectativas, não achei a protagonista de Querida Kombini tão estranha assim.
Isso se dá em grande parte por conta da narrativa. Murata, sem muita dificuldade, nos incita a pensar nos lugares-comuns da sociedade. Os encontros da narradora com amigos e familiares são aquilo que os jovens chamam de cringe. Cheios de perguntas inconvenientes, pois o único interesse das pessoas ao redor de Furukura envolvem vê-la mudando de trabalho e enfim encontrando um grande amor. Com um recorte específico da cultura japonesa, nos convida a questionar esse conceito engessado de felicidade e ascensão pessoal e profissional.
O negócio é tão extremo que um dia ela anuncia ao telefone que há um homem no seu apartamento e a irmã já presume que é um pretendente, enchendo-a de perguntas e com uma empolgação genuína nunca vista pela vida de Furukura.
Quem é mais estranho? A pessoa que busca se encaixar num padrão ou quem não faz questão? Fiquei às voltas com essas questões enquanto tentava puxar a ótica de Murata para a minha infância e adolescência num lugar apegado às tradições. Eu não tinha pressa alguma em me encaixar no que a sociedade considerava bom para o meu futuro. E isso, aos olhos dos outros, era esquisito. Para mim, contudo, tudo parecia muito genérico e não entendia por que comportamentos tão ordinários eram tidos como estranhos.
Não era muito chegada à música sertaneja típica da região onde nasci, não tinha pressa em ter relacionamentos amorosos, tampouco gostava de balada. É um baita clichê, óbvia caricatura de mim mesma, mas o mundo ideal consistia num cantinho tranquilo para ler livros e em horas e horas ouvindo música e tentando traduzir as letras com o meu inglês iniciante. Adorava estar entre amigos, porém não sentia necessidade em me juntar a eles num ambiente barulhento onde mal dava para trocar duas frases.
Sentir desconforto na minha pele não ajudava. Não me via como as minhas colegas, magras, maquiadas e com a escova impecável às 7 da manhã. Estudar e tirar boas notas era responsabilidade suficiente para minha versão mais jovem. Usava roupas largas, amava combinar um camisetão de banda com jeans surrado e All Star. Era a personificação do que as pessoas chamam de uma menina desleixada.
Cresci com dificuldade em verbalizar e acolher minhas esquisitices, e talvez dando atenção desnecessária ao que as pessoas poderiam pensar disso. Mesmo que na maior parte do tempo essas tais questões fossem banais.
Dias após terminar a leitura de Querida Kombini, numa tarde nublada e chuvosa de abril, fui trocar uma ideia com a estranha que habita em mim no show de Fever Ray em Amsterdã. Acompanho o trabalho de Karin Dreijer sem muita dedicação há alguns anos; sou familiarizada com as peculiaridades dos arranjos e letras tanto de seu projeto solo quanto do (infelizmente finado) The Knife.
A falta de conhecimento visual sobre a trajetória de Dreijer me levou ao encantamento de um jeito caótico e inesperado.
Gosto quando os artistas interagem com o público, ou mesmo quando parecem conversar diretamente conosco (oi, Lorde, estou falando de você), pois cria essa impressão de que de fato nos conhecemos. Contudo, o grande diferencial para mim está no fato de algumas músicas se transformarem e soarem ainda melhores ao vivo, e se tiver alguma dança estranha no meio, caio de amores.
Fever Ray tinha tudo - trajes, incluindo um chapéu em forma nuvem carregada, o terno oversized de Karin, as túnicas trevosas de bruxonas usadas na última música do set, jogo de luzes e arranjos que deram outro tom às músicas de estúdio, e muita performance. Tudo era milimetricamente coreografado, pensado com cuidado para criar algo que parece insano, mas que de um jeito meio torto faz sentido. Num clima etéreo extravagante, parecia uma viagem espacial filmada em slow motion da qual eu não conseguia desgrudar os olhos.
Foi mágico observar tantas pessoas envolvidas e, sobretudo, se sentindo num lugar seguro no momento do show. Ver alguém sem medo algum de ser extravagante no palco é um respiro e tanto, minando a solidão de achar que talvez não haja tanta gente esquisita como nós no mundo.
Enquanto imigrante, às vezes vejo-me neste lugar nada-comum e sem muita identificação com as pessoas ao meu redor. Para minha sorte, convivo com outros expatriados e existimos bem com nossas diferenças, tendo o fato de não termos nascido aqui como a cola que nos mantém conectados. Estar neste lugar de diferença me fez ignorar preconceitos e resoluções pregadas durante anos na minha infância e adolescência. Em outras palavras, me ajudou a ‘normalizar’ qualquer passo contrário às convenções sociais.
Enxergar o inusitado encanto dos esquisitos no palco ou representado na ficção é um incentivo e tanto para abraçar a minha doida interior. Fazer as pazes com inseguranças do passado tem me deixado mais leve.
Meu cabelo grisalho, as tatuagens que escolhi espalhar pelo corpo e o modo como me visto dizem respeito a mim e ninguém tem nada com isso. São minhas marcas, escolhas, traços da minha história e do que carrego comigo a cada dia habitando neste planeta. Da mesma forma, escolher com quem divido a minha vida e se quero expandir a família ou não deveria ser algo reservado ao âmbito pessoal, e não uma pauta de discussão para familiares e amigos.
Caetano já nos deu o tom há anos, cada um sabe a dor e delícia de ser o que é.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!
oi lidy! gostei desse texto e da sua leitura de querida kombini. tive impressões parecidas quando li há alguns anos. me chamou atenção especialmente o parágrafo do trecho: "Para minha sorte, convivo com outros expatriados e existimos bem com nossas diferenças, tendo o fato de não termos nascido aqui como a cola que nos mantém conectados."
fugindo um pouco do tema, me fez pensar no que já estava na minha cabeça essa semana sobre pertencer a algum lugar. percebi que sinto essa falta de ter essa origem em comum com pessoas diversas para existir bem com nossas diferenças.