Estrangeirismos #2 - Um desmaio parisiense
Existindo de forma prática longe do meu país de origem
Quatro mulheres apoiadas no batente da porta me fitavam com pavor estampado nos olhos. Mal conseguia distinguir os rostos, pois sentia desconforto ante a luz branca do cômodo. A vista estava meio turva, minhas pálpebras pesavam. O que mais incomodava, os olhares ou essa imensidão branca? Quem eram aquelas jovens, afinal? Onde eu estava? Não fazia mínima ideia. Pisquei, lutando contra e luz e em busca de algum fio de lucidez. Qualquer coisa apta a me trazer de volta ao momento presente e processar aquele retrato caravaggiano na minha frente. Cheia de desconfiança levantei os olhos na direção das moças enquanto tocava meus ombros e percebia estar nua por debaixo da toalha.
Desta vez fui eu quem esbugalhou os olhos.
Minha primeira suposição, embora beber acima da conta rodeada de desconhecidos não fosse parte dos meus hábitos? Me jogaram debaixo de ducha fria ao me descobrir bêbada, sozinha. Entretanto, será que desconhecidas me despiriam antes de me jogar água fria na cara pós-bebedeira? Tinha flashes de memória de estar meio embriagada antes de adormecer. Todavia, tudo seguia confuso.
Será que essas meninas me acharam bêbada e resolveram cuidar de mim? Terminei a noite com um grupo de amigos, não poderia ser. As moças insistiam em perguntar, angustiadas, se eu estava bem, e eu só queria que me passassem meu celular. Abri o WhatsApp e mandei mensagem para minha mãe. “Estou bem, não precisa se preocupar”.
Por que raios as pessoas falam comigo em inglês? Não estou na França?
Outro resquício de memória me pegou de supetão. Estava em um hostel. Aquelas moças eram, de fato, desconhecidas. Mas por que aparentavam tanto pânico?
Peguei o telefone outra vez e notei que enviara uma mensagem às 23h55 para mainha na noite anterior avisando que chegara ao hostel e ia dormir. Imaginei a reação dela ao ver uma mensagem praticamente repetida ao despertar no fuso do Brasil. Coitada.
Minha consciência não se apressava para voltar. Arrisquei uma frase. “I have no idea of what has happened, ladies. Why the heck are we speaking English to begin with?” (Não tenho a menor ideia do que aconteceu, meninas. Por que diabos estamos falando em inglês?) Uma delas respondeu perguntando “Do you know where you are?” (Você sabe onde está?), “In Paris”, respondi sem pestanejar.
De repente uma cabeça ruiva com o rosto coberto de sardas fez sentido. Era a peruana com a qual troquei algumas palavras ao me instalar no quarto, que era só para mulheres. As outras moças, que não tive tempo de conhecer, tentavam explicar que correram em meu socorro ao ouvir um baque muito forte. Todas se apresentaram às pressas, notando que minha capacidade de concentração e interpretação continuava limitada. Uma era canadense, as outras duas italianas. A italiana loira era mais trucosa, futricou o buraco da fechadura do banheiro com um grampo até conseguir abrir a porta e me encontrar jogada no chão, tremendo, desmaiada, e nua.
De minha parte, não tinha ideia do que desencadeara o desmaio, tampouco como caí.
Dali alguns minutos uma funcionária chegou anunciando, em bom francês, “Les pompiers sont arrivés” (os bombeiros chegaram). Minha memória gradualmente reconstituía os fatos e me sentia melhor ao perceber estar em segurança. Portanto, pensei ser um exagero chamar até os bombeiros. As italianas, por outro lado, apavoradas, insistiam na necessidade de ir ao hospital, pois a queda poderia ter causado um sangramento interno. Vi graça neste cuidado quase maternal, entretanto não poderia discordar. Diferente delas, não fui expectadora do tombo.
Pedi licença e encostei a porta para me vestir rapidamente. Tomei um senhor susto ao abrir a porta e me deparar com minha amiga brasileira, que estava comigo na noite anterior. A peruana por algum motivo se lembrou que eu encontraria uma amiga hispanofônica e sem pensar duas vezes ligou para ela usando meu celular. Cá entre nós, latinas são perspicazes e muito práticas em encontrar soluções rápidas.
Três homens vestindo macacão azul, muito pomposos ostentando os respectivos nomes em pequenos broches presos na altura do peito vieram me escoltar. “J’ai la sécurité sociale” (Em uma tradução adaptada, seria como dizer que estou cadastrada no SUS), disse, desnorteada, por puro impulso. Acharam graça. Rimos juntos e caminhamos até o elevador, rumo ao meu primeiro passeio de ambulância em Paris, luxo para poucos. Naquela altura já havia acionado o modo francês outra vez. Ainda me sentia grogue, mas lúcida o suficiente para responder um longo questionário e passar por exames.
O episódio se revelara mais assustador que os resultados dos exames. Nenhuma anomalia detectada, e após minuciosa análise o médico concluiu que meu desmaio fora um combo de cansaço, nervoso e muito calor. A despeito das férias universitárias, tornei-me, naquele período, guia do circuito histórico no museu onde trabalhava; e tinha dificuldades para dormir devido ao calor excessivo. Agosto de 2018 foi marcado por uma canicule avassaladora, surpreendente até por um organismo que cresceu no verão infinito do Brasil.
Tirei minha certificação do nível C1 em 2015 e morava na França há um ano. Tinha segurança em minha aptidão na língua local.
Até precisar falar sobre questões médicas.
Com o perdão de uma eventual morbidez, agora brinco que só validamos nosso conhecimento em língua estrangeira quando passamos por um incidente médico. O hospital era público e fui recebida por uma equipe atenciosa. Todavia precisei arcar com os desdobramentos do “acidente”. Embora estivesse passeando em Paris, morava na cidade onde fiz meu mestrado, Montbéliard. Encontrei um generalista rápido, mas foi uma saga para achar um neurologista num conglomerado com 26 368 habitantes, agendar e realizar ressonância magnética, e enfim me informar sobre possíveis diagnósticos em outra língua.
Foi um aprendizado significativo. Atravessei uma barreira e senti, nesta fase, minhas primeiras raízes se espalhando no solo.
Morar fora carrega o peso de que nada nem ninguém vai te esperar, similar ao sentimento de começar um novo emprego. A roda começou a girar antes de sua chegada. As pessoas já estabeleceram um ritmo de trabalho, a empresa possui mecanismos e processos próprios. Você, enquanto newcomer, precisa de tempo para aprender códigos e entender como se integrar a engrenagem.
O choque cultural é origem de muita frustração e incompreensão. Um detalhe: parto da perspectiva de quem viveu na França, um país europeu com incontáveis semelhanças aos costumes brasileiros. Imagine o impacto de quem parte a um país asiático?
Escolher outro país para chamar de lar é abdicar do orgulho e acolher outras perspectivas apesar do impacto inicial causado por elas. Torna-se um exercício constante: você talvez torça o nariz para muito do que observa e vivencia, porém aprende a criar distanciamento, constituir separação com experiências pessoais, e conviver sem sentir incômodo ante a cultura local.
Para uma integração bem sucedida, é preciso ceder. Com a passagem do tempo veio a aceitação — a cultura francesa não me pertencia, mas isso não me impedia de me adaptar.
Soa confuso, porque é. Minhas crenças foram abaladas e precisei buscar meios de fazer minhas vivências encontrarem lugar para existir nesta cultura diferente da minha. Neste percurso atribuí um tom apropriado à minha voz e fiz questão de mostrar aos locais que eu, tanto quanto eles, tenho direito a escolher onde ancorar e quanto tempo ficar.
Isso de se encaixar em um lugar não existe. Já tentou passar o círculo no buraco do quadrado naqueles brinquedos para crianças? Pois bem, não passa. Ser estrangeiro é igual. Leva tempo até encontrar uma forma onde você se encaixe o suficiente para mergulhar de vez no desconhecido.
Quando deixei a França, após dois anos e três meses tendo códigos postais na terra dos croissants, saí com a sensação de dever cumprido.
Fui embora com sólidas competências na língua francesa, com um diploma no bolso, conforme planejado, e um aprendizado inestimável. Compreendi muito, desprezei na mesma medida, porém não abri mão no meio da minha luta. Encontrei meu lugar, edifiquei construções e as compartilhei com quem cruzou meu caminho.
E saímos todos maiores, ou ao menos mais cheios, desta experiência.
Um retrato com meus amigos, Bruna, Vitor e Lays, na noite anterior ao acidente
Exibindo minha identificação do hospital como se fosse pulseirinha de balada :p
Apêndice
Breve adendo para potenciais curiosos
Só tenho elogios ao sistema de saúde público da França, que chamo carinhosamente de equivalente ao SUS no texto. Qualquer pessoa com residência na França tem direito a sécurité sociale, ou sécu, para os íntimos, que dá acesso aos hospitais públicos e a especialistas. Cobre igualmente uma parte dos custos de medicações prescritas pelo médico. O “problema” é que alguns exames e procedimentos cirúrgicos não são 100% reembolsáveis pela sécu. Neste caso, é possível contratar uma mutuelle, o equivalente a um seguro privado no Brasil. São várias modalidades possíveis que te permitem obter reembolso completo de qualquer atividade médica e medicações prescritas. Precisei passar por muitos exames, portanto assinei uma mutuelle depois do meu primeiro ano morando na França. É importante se informar antes de qualquer consulta ou exame, pois os procedimentos variam muito de um local ao outro. Às vezes você só precisa apresentar seu cartão da sécu ao fim da consulta ou exame, ou precisa pagar e depois solicitar o reembolso.
Dizer que tenho seguro de saúde local foi engraçado para eles, mas era mero mecanismo de defesa da imigrante desesperada. Nunca pesquisei a fundo para saber se seguros de saúde são mesmo obrigatórios para viagens internacionais. Em todo caso, mesmo assegurada, morria de medo de ter um acidente e descobrirem que não tenho seguro. Ouvi MUITAS histórias de pessoas que viajaram sem seguro e precisaram pagar muitos dinheiros estrangeiros depois de um acidente. Pois imagine se o pessoal do hostel descobrisse que chamou uma ambulância para uma moça sem seguro! (Sendo sincera eles cagariam e me mandariam de qualquer forma para o hospital, e prontamente descobririam meu endereço para enviar a cobrança)
Portanto, ouça minha palavra e garanta um bom seguro antes de viajar. Se for morar fora, verifique as condições para ter um seguro local no seu destino. Mesmo que seja para um curso de três ou seis meses. Sempre bom ter uma garantia!
Tamanho meu trauma, decidi manter o termo canicule em francês. A canicule é uma onda porreta de calor que dura entre três e quinze dias, caracterizada por uma baixa variação térmica. Em outras palavras, faz um calor dos infernos durante o dia, e as temperaturas caem pouco durante a noite. É um calorão violento, muito pior do que qualquer verão próximo de 40 graus que vivi no Brasil. Desencadeou uma enxaqueca que precisei tratar durante o mestrado e, segundo o médico que me atendeu em Paris, pode ter impulsionado meu desmaio.
Não mencionei um detalhe importante na última carta: o Estrangeirismos é produto do curso “Técnicas criativas para transformar ideias em texto” de Aline Valek. Fiquei tímida de compartilhar na página do curso tendo uma única edição publicada, mas agora me sinto mais segura para divulga-lo igualmente por lá. Acompanho o trabalho da Aline há anos e fazer os exercícios propostos foi uma delícia. Me inspirou e me ajudou a encontrar uma estrutura bacana para minha newsletter.
Gosta de escrever, mas anda precisando de incentivo? Já pensou em escrever, mas pensa ser incapaz, ou morre de medo de julgamento? O curso da Valek pode ser uma boa porta de entrada. Caso você queira mergulhar em mares mais profundos e se apaixonar de vez pelo poder revolucionário da escrita, indico a Oficina Escritas de Mim, da Tayná Saez. Sem o combo Tayná e Aline vocês provavelmente não estariam lendo Estrangeirismos agora.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com
A quem me escreveu e compartilhou a primeira edição, muito obrigada! Todo apoio é válido e me inspira a dar o meu melhor para enriquecer minha produção literária e compartilhar uma parte do que crio neste espaço.
Beijos e até a próxima!