“Até centros espíritas começavam a formar-se acanhadamente no subúrbio católico e Lucrécia mesma inventou que às vezes ouvia uma voz. Mas na verdade ser-lhe-ia mais fácil ver o sobrenatural: tocar na realidade é que estremeceria nos dedos”
Clarice Lispector - A cidade sitiada
[ Para ouvir ao som de Undiscovered First, da Feist ]
Antes dos sete anos de vida, não nos lembramos de nada que aconteceu conosco. Guardamos lembranças vagas, mas raramente sequências inteiras. É o que a ciência chama de “amnésia infantil”. Descobrir o mundo é sopro de vida para uma criança, enquanto os pais buscam guardar fragmentos de existência que logo vão se apagar do cérebro em desenvolvimento. Ao menos foi o que aprendi ouvindo Linha do tempo, um dos episódios do podcast Rádio Novelo Apresenta.
Ali tive a oportunidade de conhecer a história de Alberto Villas, que, sem grandes pretensões, registrou os primeiros sete anos de vida do filho em cadernos. Repetiu a ação com a segunda filha e, ao nascer da terceira, resolveu retomar a atividade - e nunca mais parou. Maria Clara coleciona cadernos assinados pelo pai relatando todos os dias de seus 32 anos de existência.
Se não é um exercício lindo? A atenção na observação e registros das experiências de mundo de seus filhos, assim como o cuidado em guardar recortes de jornais junto às memórias. A leitura de breve texto onde o pai relata a dificuldade da filha em pegar no sono com um recorte de jornal que fala sobre o lançamento da nota de dois reais deve soar banal. Contudo, além do registro histórico, o que está nas entrelinhas é basal, de uma riqueza inestimável para pequenos seres humanos em desenvolvimento que, um dia, tornarão-se adultos.
Enquanto ouvia, pensei muito em Annie Ernaux, artesã quando o assunto é transformar vivências em obra literária. Em diversas passagens de seus livros ela se refere a diários e fotografias antigas. Partindo de registros físicos, a autora se apoiou nas memórias e aos poucos construiu um legado onde compartilha os pontos mais marcantes de sua história com leitores.
O interesse crescente pelas obras dela não é pura consequência do Nobel. É um reflexo do quanto, nos interessamos, sim, pela vida alheia. Somos grandes fofoqueiros, e vai ver é por isso que não consigo desviar o rosto quando passo pelos imensos janelões sem cortinas da vizinhança.
Ler Ernaux foi para mim sinônimo de iluminação. Não se escreve apenas ficção, e não posso desprezar tantos anos enchendo diários e compondo crônicas e ensaios. Nada deve ser desperdiçado, e pouco interessa o resultado desta bagunça. No futuro, esses tantos cadernos e HD externos podem terminar descartados, ou parte se transformará em algo a ser lido por qualquer interessado.
Quem sabe?
Em todo caso, ouvir o podcast e ter sempre mais uma obra de Ernaux a ser descoberta me deixou desejosa de reler diários e rabiscos antigos.
Tocar nessas ranhuras do tempo vai me revirar. Pelos mais diversos motivos, mas vai. Apesar do desconforto, me parece um movimento crucial para entender o que me trouxe até aqui. Quero me jogar no exercício de conectar os parágrafos com registros fotográficos e o que ficou estocado no arcabouço de lembranças. Em uma das passagens de A cidade sitiada, de Clarice Lispector, ela aponta o erro como descoberta. “Errar fazia-a encontrar a outra face dos objetos e tocar-lhes o lado empoeirado”. Gosto de pensar esse erro enquanto errância.
No dicionário, errar significa “cometer um erro, enganar-se”, mas também significa “andar sem rumo, vaguear”. Anseio errar nessas memórias até encontrar-lhes a outra face e tocar-lhes o lado empoeirado.
Há poucos dias de completar 32 anos, existir está à flor da pele. Mais que de costume. Menstruar e sentir muitas cólicas não ajudou, mas esse passeio pela lama hormonal deu o gás que faltava para remexer a poeira sem me queixar da rinite.
Ser arqueóloga da minha história pode ser um convite a fazer as pazes comigo mesma. Ajudar-me a colher os cacos sem medo de eventuais feridas e carregada da paciência necessária para tal atividade. Baby steps. Dar vazão aos barulhos, permitir-me explodir, esvaziar, quebrar paredes enquanto escolho tijolos mais adequados aos 30 e poucos.
Caso tenhas perdido a edição anterior, vou sortear um kit contendo dois livros para um dos assinantes de Estrangeirismos. Dá para participar até o dia 15 de maio!
Hoje me despeço com um belo registro dos anos 90. Não nego nem afirmo que já escrevia bobajadas na internet desde essa época.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!
Que bonito ficou esse texto
Que história incrível essa do podcast! Vou até ouvir.
(Adorei a foto da mini-querida Lidy no computador com capa, usando cordão de miçangas 😍)