Estrangeirismos #24 - O mundo real é rosa pastel
Não foi escolha estética, a cor só desbotou mesmo
Acordei cansada na manhã de brisa fresca daquele domingo. As remelas pareciam ter grudado as pálpebras, devo ter sonhado demais. Estávamos na chácara de uma colega de trabalho do meu pai, em Rubinéia, interior de São Paulo. Vez ou outra chamavam-me peixinha naqueles anos, pois adorava água e poderia nadar até perder a noção da hora. Tanto que passei a noite anterior brincando com as crianças e refrescando-me no rio próximo à casa. Nadar é cansativo, julguei o cansaço enquanto consequência da folia aquática.
Havia, contudo, algo esquisito. Não me parecia ser mera vontade de fazer xixi. Esfreguei os olhos, dei bom dia aos adultos que acordaram antes de mim e já tomavam café, e dirigi-me ao banheiro, onde descobri um filme de horror inteiro numa mancha de sangue na calcinha.
Há poucas semanas de completar dez anos, sabia muito pouco sobre menstruação. As visitas mensais tornaram-se fonte de infinitos terrores. As cólicas provocavam náuseas e o fluxo era severo. Não suportava o peso de lidar com tanto sangue e uma mudança tão violenta no meu corpo. Era criança demais para abandonar os brinquedos e desenhos animados enquanto me contorcia de dor e precisava ficar em estado de alerta constante. Os absorventes mal davam conta e eu morria de vergonha de ser flagrada com manchas de sangue no short do uniforme escolar.
Ao menstruar, abri uma caixa de Pandora onde descobri diversos desconfortos sobre ser mulher.
Em uma das primeiras sequências de Barbie (2023), de Greta Gerwig, a Barbie Padrão, interpretada por Margot Robbie, nos apresenta o universo impecável de Barbieland. Mulheres reinam absolutas, tudo é milimetricamente calculado em cena para gritar perfeição em todos os cantos. Na cabeça das bonecas que ali residem, a Barbie foi revolucionária e mostrou que mulheres podem ser o que elas quiserem no “mundo real”. Missão cumprida e cuca fresca para se esbaldar no mundo cor de rosa perfeito.
Até o dia em que a personagem de Margot acorda de sonhos intranquilos e a ordem natural das coisas parece ter sido abalada. A gota d’água foi tentar calçar os sapatos e perceber que os seus pés ficaram retos.
(Senti muito quando ela diz a si mesma que nunca usaria sapatos com salto caso os seus pés fossem retos)
Quando ela visita a Barbie-Estranha em busca de ajuda, descobre que a repentina desordem é reflexo de comportamentos da humana que brinca com ela. A única solução possível, e ainda assim não garantida, é ir ao mundo real e resolver o problema na base do diálogo. Ken, intruso, embarca junto para o grande choque de realidade do longa. Barbie fica horrorizada ao notar como as mulheres são tratadas de forma completamente diferente daquela que está acostumada, enquanto Ken fica maravilhado ao descobrir a existência do patriarcado.
É quando começa o processo de desgraçamento mental da Barbie Padrãozinha. Nesse contato com o mundo real, ela entende que ser mulher não é bem um mar de rosas. Para piorar, ela e as amigas estavam muito distantes do ícone de empoderamento que acreditavam ser.
A menstruação marcou só a primeira etapa da metamorfose. Os ciclos pioraram. E ao passo em que não encontrava jeito de conviver bem com o corpo em mutação, outras mudanças arrastaram-me feito ressaca. O mundo cor de rosa de quem só se preocupava com as lições de casa e longas tardes brincando com bonecas desbotou. Sem tempo para enjoar dos brinquedos, peguei-me diante de questionamentos que não pedi para ter, mas que de certa forma me foram impostos.
Cobranças começaram discretas. Era um comentário negativo sobre os cabelos anelados, olhares tortos diante das unhas com cutículas grossas e sem verniz; apelidos maldosos depreciando minha forma física, entre tantos outros. Mal imaginava que passados os 20 anos, a menstruação seria o menor dos problemas.
Por mais imenso que seja meu amor pelo cinema, as assinaturas mensais nunca resistem ao verão. Quando as temperaturas sobem na Holanda, aproveitar o sol rasgando o céu até as 22h é lei, sobretudo por estar ciente que essa farra dura pouco tempo. Voltar ao Kino assemelhou-se a matar a saudade de amigos que não vejo há anos. Sentei-me na Sala 1 com um drink criado especialmente para o filme, pronta para me divertir, alheia a julgamentos. Só queria me alienar e desconectar o cérebro das obrigações.
Peguei as problematizações e coloquei num saco bem amarrado, embalada única e exclusivamente pelas lembranças de tardes me aventurando a criar histórias àquelas bonecas. O que poderia esperar de um filme inspirado numa marca tão famosa?
Poderia me limitar a dizer que Greta foi lá e nos disse que se até a Barbie, que é perfeita, está em crise existencial, imagine nós, meras mortais com curvas acentuadas e cabelos desgrenhados? Poderia, mas seria injusta. Ela não se limitou. Uniu o útil ao agradável e, carregada de ironia, explicou com muito didatismo alguns dos porquês de tantos gritos sufocados das mulheres.
Desta vez não saí do cinema pronta para militar e lutar por direitos iguais. Parece ingênuo pensar num live-action de uma boneca loira e magra enquanto instrumento de militância para conscientizar mulheres sobre qualquer pauta urgente.
Ao invés de dar aquele tapinha no ombro, o filme pegou-me no colo. Quando a personagem de America Ferrera, Gloria, iniciou seu monólogo, chorei dores entaladas como se estivese no lugar dela balbuciando as mesmas palavras. Estamos cansadas, exauridas, esgotadas até o último suspiro por precisar lutar por direitos tão básicos. Mais didático que as quase duas horas de Barbie, impossível.
Quis viajar no tempo e mostrar esse filme à minha versão mais jovem que acabara de menstruar. Dizer-lhe que talvez passe muito tempo presa ao monóloga de outra personagem, Pearl (dos quotes que abrem essa edição), aterrorizada pela imprevisibilidade da vida e o receio de estar fadada ao fracasso. Mas que a vida é feita dessas estradas esburacadas e elas não são tão horríveis assim. Por vezes até escondem boas surpresas.
Acima de tudo, o longa reforçou o que me é mais caro: não estou sozinha. Estamos juntas e a batalha pode ser abordada com doses cavalares de humor. Às vezes tudo que uma mulher deseja é uma dose de acolhimento, de olhar para os lados e não se ver tão só.
O mundo real é rosa pastel, tão desbotado e desgastado quanto nós, mas ainda lhe restam alguns momentos de conforto em que dá para ver uma luz no fim do túnel.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!
Eu costumo acumular suas newsletters só pra ficar feliz de ter mais de uma pra ler. :)
Gostei demais do link da sua menarca com as discussões propostas pelo filme. Quero assistir em breve.