“All you have to do is sing in the choir
Set yourself on fire every once in a while
And sing in the choir
With me
(...)
I love my country, stupid and cruel”
Wilco, Cruel Country
Perdi o costume das temperaturas de dois dígitos. Pouco parece que vivi quase três décadas no Brasil. Contudo, cada ano a mais na Holanda me faz estranhar locais onde não preciso carregar um casaco na bolsa. A primeira baforada de ar quente ao sair do aeroporto de Nápoles quase levou consigo meu chapéu. Precisei de uma pausa até habituar-me ao suor percorrendo o corpo e a encontrar uma área coberta enquanto esperávamos a van da locadora de carros. O sol é impiedoso. No caminho de carro até Vico Equense, a quantidade de casas amontoadas, as buzinas, e o volume explosivo da voz dos passantes trouxe-me ares de Brasil. A imagem no canto esquerdo da estrada, todavia, não negava. Estávamos no sul da Itália.
Li Elena Ferrante pela primeira vez quando a tradução de A Amiga Genial, primeiro volume da série napolitana, foi publicada. Lembro-me até de pegar emprestado com a Taize. Era muito ressabiada com hypes literários e não queria comprá-lo. Devorei cada página e a tetralogia tornou-se o Harry Potter da jovem adulta. Dali adiante aguardei o lançamento das versões brasileiras, contendo o anseio de correr para ler as continuações já traduzidas para o inglês.
Considerando o lançamento do primeiro volume nos idos de 2015 e o fato de não ter relido nenhuma edição, alguns detalhes se dissiparam da memória. Mas guardo a lembrança magnética do Vesúvio em diversas passagens. Sobretudo nesta:
“Você ainda perde tempo com essas coisas, Lenu? Nós estamos voando sobre uma bola de fogo. A parte que resfriou flutua sobre a lava. Sobre esta parte construímos prédios, pontes e estradas. De vez em quando a lava sai do Vesúvio ou então provoca um terremoto e destrói tudo. Há micróbios por todo lado que nos fazem adoecer e morrer. Há as guerras. Há uma miséria ao redor que nos torna todos ruins. A cada segundo pode acontecer alguma coisa que lhe fará sofrer de uma maneira que nunca haverá lágrimas suficientes. E você faz o quê? Um curso de teologia em que se esforça para entender o que é o Espírito Santo? Deixa pra lá, foi o Diabo que inventou o mundo, não o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Quer ver o fio de pérolas que Stefano me deu?.”
Elena Ferrante, A Amiga Genial
Por onde passávamos, o Vesúvio não nos perdia de vista. Ao menos um pedaço dele nos espreitava em cada cenário, ou se impunha, minando possibilidades de admirar outros elementos da paisagem. Nunca vira um vulcão tão de perto e manifestei encanto culposo. Pensava nas cidades de Pompeia e Herculano, soterradas pela erupção de 79 d.C, aterrorizada com o potencial de destruição e na mesma medida fascinada.
Como no trecho d’A Amiga Genial, não deixava de pensar na ameaça constante do vulcão e do quanto seus traços transpiram destruição nas entranhas de onde caminhávamos. Mesmo pesando o impacto passado e potencial de um vulcão em erupção, não conseguia conter-me. A cada saída da estação de trem, parava diante do horizonte de Vico Equense e admirava aquele amontoado de lava endurecida e cinzas.
Esse canto da Itália transportou-me através do tempo. Não apenas pela oportunidade de visitar Pompeia, um desejo que alimentei desde os tempos em que devorava livros de história no Ensino Fundamental. Mas especialmente pela sensação de entrar num cenário dos anos 70. A natureza é mesmo deslumbrante, as fotos nos livros e nas buscas por um hotel não mentiram. Às vezes parecia irreal poder caminhar livremente entre as formações rochosas e as pedras vulcânicas da praia.
Mesmo os edifícios recém-construídos, que discretamente se esgueiram entre as estruturas mais antigas, parecem ter sido desgastados pelo passar do tempo. Muitos deles surgem em lugares inusitados e pouco convencionais, dando a impressão de fragilidade. Os tuktuks percorrem as ruas em quantidade quase superior aos automóveis, espalhando barulho e sujeira pelas imediações. Raros são os neons espalhafatosos ou projeções em grandes telas nas fachadas dos restaurantes e lojas. Os estabelecimentos fazem-se notar por meio de placas descoloridas pelo sol, que parecem feitas no WordArt do início anos dos anos 2000. Essa aura vintage tem um encanto próprio, e parece de fato pertencer a outras décadas.
Quando visitei Gênova em 2019, marquei no diário que o céu era feito de tecido. Entre Nápoles, Sorrento e Positano, há alguma semelhança nesse sentido. Para além das roupas que devem secar em poucos minutos no tórrido verão italiano, muitas fachadas se cobrem de faixas imensas. Em grande maioria, estampam o rosto de Maradona ou o brasão do time de futebol do Nápoles. Vez por outra, quando parava em algum farol, notava rostos nas pequenas sacadas a observar a movimentação das ruas.
A reação imediata era questionar se aquela pessoa vivia ali há muito tempo ou só estava de passagem. Bem sei quantas biografias criei às nonne trajando aventais, ou as histórias que criei para um casal que conversava à espera do trem, que por lei sempre se atrasa. Às vezes parecia-me difícil diferenciar um local dando cabo dos compromissos diários de um turista deslumbrado com uma paisagem tão diferente do seu local de origem. Quantas histórias essa imensa colcha de retalhos deve carregar?
Enquanto a Holanda se destaca como uma boa moça moderna, empenhada nas questões do meio ambiente e nas consequências das escolhas atuais para as gerações futuras, observei com um toque de humor o estilo despretensioso do sul da Itália.
Os italianos, na sua simplicidade, almejam atravessar cada dia, sem o peso de inquietações que transcendem suas fronteiras. Rodeados por uma história rica e cenários deslumbrantes, sentem-se confiantes o bastante para viver suas vidas sem depender do turista que muitas vezes supõe ter algum impacto na rotina diária local.
Aos aventureiros prontos para abraçar o melhor dessa região, é prudente abrandar a busca por registros de viagem nas redes sociais e, em vez disso, focar em calçados confortáveis.
Por fim, vale lembrar que pro almoço só tem pizza. A região oferece experiências autênticas, mas também é um lembrete de que, às vezes, é melhor se render ao encanto local do que às expectativas pré-concebidas.
Para além dos Estrangeirismos
A Virginia escreveu um texto sobre o processo dela em repensar o autocuidado. Tenho pensado muito nisso, sobretudo diante dessa enxurrada de influenciadores vendendo um estilo de vida saudável inatingível.
Enquanto lia, lembrei-me logo de “Contra o autocuidado”, da Paloma. Em diversos momentos já questionei se cuidar de si mesma não devia ser um direito humano básico. Paloma desvendou o tema de forma corajosa e perspicaz. Ambos os textos oferecem uma plataforma sólida para debater o verniz do autocuidado tão utilizado para vender produtos que perpetuam a ilusão de bem-estar. Como se uma fina camada de creme na cara fosse magicamente dar fim aos nossos problemas.
Em 2016, quando comecei o tratamento para lidar com a ansiedade, já tinha minhas newsletters de estimação. O Substack nem sonhava em existir. Naquela época, a Nath mandava uma cartinha nova toda semana. Era a alegria das manhãs de quinta-feira. Houve um dia em que uma edição em particular mexeu demais comigo. Teve um peso imenso no processo de cura, e me serviu como um abraço apertado. Desde então sou 100% gratiluz por todas as vezes em que Nathalia sabiamente decidiu compartilhar suas palavras conosco na internet. Ela está para lançar seu primeiro livro, caminhos de ida, e se eu fosse você não perderia a oportunidade de garantir o e-book na pré-venda. Por enquanto, dá para descobrir um pouco sobre o processo de confecção da obra.
Aqueles que frequentam o espaço do Substack provavelmente já leram pelo menos uma das edições de Segredos em órbita, da maravilhosa Vanessa Guedes. Ela ministrará a oficina “Revelando Segredos” no primeiro fim de semana de setembro e estou animada para participar.
O Goodreads tem a mesma cara de quando criei conta por lá uns bons anos atrás. Existe um charme secreto em seguir usando uma plataforma inimiga da inovação, e nada pode me tirar o gosto de perder bons minutos do dia lendo resenhas infames por lá. Joe Wellman traduziu o sentimento como ninguém neste artigo (em inglês). Quem quiser falar sobre livros, aliás, pode me dar oi por lá.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!
Oi, Lidy! Muito obrigada pela indicação. Fico muito feliz que as minhas palavras tenham reverberado alguma coisa aí.
Demorei alguns anos pra ler a tetralogia porque sou inimiga do hype, mas quando eu finalmente li também tive muita vontade de conhecer Nápoles. Quem sabe um dia.
Faz 16 anos que estive na Itália pela primeira e única vez, mas teve muita pizza pro almoço. Beijos!