Estrangeirismos #3 - Fietsgezellig
Parece um palavrão ou spam, mas é só um neologismo criado sem maestria em minha mente
Minha primeira lembrança de independência ciclística data de meus oito anos, quando morava em Cassilândia, interior do Mato Grosso do Sul. O tamanho da cidade transmitia confiança aos meus pais, que me liberavam desacompanhada aos passeios com a magrela. Essa independência foi conquistada a muito custo, após ralar os joelhos no quintal de casa em tentativas infinitas de me equilibrar em duas rodas. Ela era bordeaux, com uma cestinha preta, e foi minha grande companheira naquele asfalto desgastado e tomado por terra vermelha. Por circunstâncias da vida, acabou empoeirada em meio a entulhos de mudança quando partimos para a capital, Campo Grande.
Pegávamos o carro para qualquer coisa, deixando a bicicleta cada vez mais obsoleta. Não tardou e ela virou inexistência. No meio do percurso me mudei para São Paulo, onde definitivamente não me sentia segura para retomar a relação com o pedal. O tempo correu tão rápido que só subi em uma bicicleta — elétrica! — quinze anos depois, na capital da Espanha.
Foi catastrófico.
Minha noção de equilíbrio se perdeu naquela altura e, apesar da insegurança, não quis desistir. Existe todo um charme em desbravar uma cidade nova pedalando, estava com amigos que não via há tempos, valia lutar contra o medo. Quando pensei estar mais relaxada, caí na frente do parque El Retiro. Soa quase poético ao contar desta forma, mas foi o suficiente para me deixar com medo e retomar o hiato ciclístico.
Avancemos alguns anos na história, quando fui aprovada no mestrado na França. Assim como Cassilândia, Montbéliard é uma cidade minúscula e com transporte público de qualidade duvidosa. Talvez fosse mais fácil comprar uma bicicleta usada e fazer dela meu meio de transporte. Seria o projeto perfeito, caso eu tivesse uma capacidade mínima de pedalar. Morria de medo, e tampouco a possibilidade de estar em um lugar menor e relativamente mais seguro que São Paulo conseguiu acalmar as angústias.
Antes de me mudar para a França passei alguns meses na casa de meus pais, em Campo Grande, onde acabei redescobrindo o projeto Bike Anjo. Eles oferecem duas modalidades de assistência: uma onde o voluntário ensina a pedalar, e outra onde um (ou vários) voluntário te ajuda a ganhar confiança ao pedalar na cidade.
Consegui uma abençoada alma que teve paciência para rebater meus medos em um fim de tarde. Faltava pouco para minha partida, estava longe de ser o suficiente para conquistar a independência que a mini Lidyanne de oito anos teve um dia, porém foi um primeiro passo. Prometi a mim mesma que me empenharia ao chegar em território francês.
Qual seria o desarranjo desta história? Faço tudo no meu ritmo, então levei alguns meses até me encontrar com Josephine. Por 25 euros, encontrei este precioso item cor-de-rosa da Peugeot no Leboncoin, o mercado livre deles, uma bicicleta que mais parecia de criança, toda adequada às minhas ambições.
Todavia lá estava ele, o medo, fazendo ciranda comigo. Josephine virou casa de muitas teias de aranha. Até descobrir que uma parte da Euro 6, ciclofaixa que vai da Basileia, na Suíça, até Nevers, na França, passava pela cidade. Tinha receio de cair na frente das pessoas e passar vergonha? Sim, porém o medo maior era estar entre outros veículos. Me provocava um pavor indescritível. Por isso a ciclofaixa respondia tão bem aos meus requisitos — era isolada da estrada, com acesso apenas aos ciclistas e pedestres.
Descambei algumas vezes em passeios deliciosos para aqueles cantos. Bastava, porém, pegar o curto trecho que me levava até em casa para descer da bike e carregá-la ao meu lado. Eu era isso mesmo que você conhece como cagona.
Josephine terminou mais uma vez num porão. Desta vez dos meus avós (adotivos, mas isso é história para outra carta) franceses. Não consegui vender em tempo antes de me mudar para Annecy, então agora ela abriga outras teias de aranha em território francomtois.
Tive uma passagem relâmpago de Vélonecy, as bicicletas de aluguel da estação central de Annecy, no mesmo esquema de Montbéliard. Pegava meus trechos de ciclofaixa vez ou outra para depois caminhar empurrando a bicicleta morro acima até chegar em casa.
Foi preciso um país que prioriza as bicicletas sobre qualquer outra forma de transporte para dar um pé na bunda do medo. Depois da minha temporada omelette du fromage, vim comer hagelslag de café da manhã na Holanda e este país é o pavor de todo direitista, pois tem mais ciclofaixa que gente. Cheguei pouco antes da pandemia, que teve sua contribuição neste processo ao esvaziar as ruas. Após ouvir minha declaração oficial de cagona, meu parceiro sugeriu que alugássemos uma bicicleta num primeiro momento e assim foi feito.
No intuito de evitar transporte público e passar o menor tempo possível fora de casa quando saía para fazer mercado, topei o desafio de me deslocar exclusivamente de bike. Conforme as restrições diminuíram, aumentei minhas distâncias, sempre com todos os cuidados necessários, até o dia em que fui de Haia a Rotterdam (e voltei!) de bicicleta.
Um detalhe importante em relação às bicicletas holandesas é que boa parte delas não possuem freio ‘tradicional’. Elas são backpedaling, um sistema de frenagem que funciona ‘empurrando’ o pedal para trás em uma bicicleta. Ou seja, você freia com os pés. Se você tentar alugar as bicicletas amarelas disponíveis pelas estações de trem do país, preste atenção: todas são backpedaling. Origem do meu pavor número dois, fui posta à prova quando o pneu da bike alugada furou e a substituíram por um modelo backpedaling. Levei um tempo a me adaptar e hoje acho perfeição pura, quem diria…
Descobrindo o conforto do backpedaling com minha bicicleta alugada
Andar de bicicleta era um daqueles itens que transitava de um ano para o outro na minha lista de desejos a realizar de cada réveillon. Precisei de uma bike que não me pertencia para atravessar estes anos de insegurança.
Daí que circunstâncias da vida me aproximaram de uma colega de trabalho poucos meses antes da partida dela. No combo mudança a bicicleta dela terminou na minha garagem.
Ando ligada demais nestes ciclos, pensando nas voltas que a vida dá e nos encontros que proporciona quando é para ser, e não quando nós queremos. Sinto um pouco pelos muitos passeios perdidos pela insegurança, mas agora não só transito sozinha e com o peito cheio de confiança, como poderei fazê-lo com uma bicicleta cem por cento minha.
O nome dela será Rose Grace, caso tenha despertado sua curiosidade.
Rose Grace perfeita no estacionamento gigantesco da estação Den Haag Centraal
Seria injusto compor a edição dedicada à Holanda sem falar sobre minha paixão mais significativa daqui. Há sempre um aspecto típico de cada país, uma característica que você deveria incluir à sua realidade para facilitar o processo de integração. Aqui, é a bicicleta, alma de um país inteiro. A sociedade tolera a resistência de um estrangeiro em não querer aprender holandês, mas reage com estranheza se a pessoa diz que não pedala.
Embora não fosse minha intenção, incorporei a prática como ponto essencial de adaptação. Consigo me sentir estranhamente parte da sociedade só por pegar a bicicleta até para completar um trajeto que tomaria dez minutos a pé.
Mobilidade urbana é assunto sério, e desde meus primeiros meses morando nos Países Baixos me impressionou o quanto a vida é moldada para não precisar de carro. Ou no máximo ter um veículo para usar ocasionalmente para uma viagem mais longa nos dias de folga. Entretanto, o foco é este: construir cidades onde as pessoas possam se deslocar sem dificuldade usando apenas bicicleta e transporte público.
Produzindo endorfina de modo tão espontâneo, é difícil dar espaço para a raiva crescer. Por isso os holandeses parecem tão despreocupados e alheios ao mundo que os cerca. Quiçá seja um comportamento nocivo que costumo interpretar como egoísmo, entretanto, ao analisar culturalmente e me colocando como intrusa-recém-chegada, só me parece uma forma de lidar com a vida sem inquietudes.
Tal característica, aliás, me aproximou de um dos meus aspectos favoritos da vida em São Paulo. Ninguém se importa com sua existência. Quer andar com um par de meias fluorescente? Vá em frente, nenhum olhar estranho será atribuído. Ouso afirmar ser ainda mais intenso na Holanda, pois já passei por situações onde me questionei se a pessoa era cega ou se de fato não viu que eu estava logo ali à sua frente.
Diferente da França, na Holanda me senti pela primeira vez em um país de primeiro mundo. A gastronomia local deixa a desejar a meu gosto, mas a segurança completa este gap com imensa maestria. É fantástico morar em um país funcional, onde tudo se resolve online e do jeito mais prático possível. Em que país a nação seria tão flexível e apresentaria toda e qualquer documentação na língua local E em inglês? Seria um escândalo para a França, por exemplo.
Tamanhas regalias têm seu custo, não imaginaria de outra forma. Existe uma contradição curiosa no coração da nação holandesa. Sinto que existe um rancor em não ter protegido a língua oficial ao longo dos anos. Eles enaltecem o quanto são acessíveis por se comunicarem impecavelmente em inglês. Em uma primeira conversa, é como se eles esperassem que você elogiasse a perfeição da pronúncia deles. Eles não vai hesitar em opinar sobre seu sotaque ou perguntar de onde você vem devido ao sotaque. Da mesma foram, eles não pensam duas vezes antes de adotar a língua anglo-saxônica ante alguém com dificuldades em se exprimir em holandês. O modo como esta transição se efetua deixa a impressão de que eles de fato não dão a mínima para o quão irrelevante é a língua holandesa.
Na mesma medida, eles também vão engatar uma conversa em holandês em uma roda do trabalho e te deixar com cara de paisagem ao lado sem entender nada.
Após tomar minha segunda dose da vacina, no início do segundo semestre, voltei a frequentar o escritório. A empresa é holandesa, portanto passei a ter mais contato com os locais, etapa que havia pulado devido à pandemia. Nestes meses, notei o quanto não existe acordo com relação ao ponto de vista dos locais. Não sei até que ponto é sincero, mas muitos enfatizam que holandês não vai me servir para muita coisa, enquanto outros afirmam que desenvolver meu entendimento da língua rumo a uma tão sonhada fluência tornaria minha vida mais fluida.
Viver no país sem falar a língua local, para mim, é um erro. Meu plano, portanto envolve aprender a língua. O processo levará mais tempo do que minha adaptação com a bicicleta, óbvio. Porém aprendi algo com os holandeses — quem acredita sempre alcança. Isso, misturado ao meu clichê de ser brasileira que não desiste nunca, há de gerar uma frutífera combinação.
Se atingi o fietsgezellig, um dia hei de conquistar meu taalgezellig também.
Apêndice
Breve adendo para potenciais curiosos
Reconheço, foi ousadia pura acabar o texto com os termos fietsgezellig e taalgezellig, que nem existem. Engajar o leitor talvez não seja o meu forte. Tampouco tenho o talento de Manoel de Barros, pois ambos são neologismos criados por esta cabeça doida que vos escreve. Para fins de tradução, gezellig seria como a saudade da língua portuguesa. É intraduzível. A palavra é usada pelos locais para definir ambientes, situações e sensações agradáveis e aconchegantes. Fiets é bicicleta, e taal é língua. Sentiram o quanto já progredi no aprendizado do holandês?
Se você ficou com cara de interrogação ao ler a palavra hagelslag, não se assuste, posso explicar. Hagelslag é granulado. Isso mesmo, aquele granulado perfeito para decorar brigadeiros atende por este lindo nome na Holanda. O café da manhã típico daqui é composto por uma fatia de pão de forma, manteiga e hagelslag. Estas e outras peculiaridades da cultura holandesa você encontra por aqui.
Falando no meu blog pessoal, resolvi viver um momento de loucura e postar qualquer coisa por 21 dias consecutivos. Claro que após uma semana a coisa já emperrou e não deu tempo de publicar os últimos três posts, mas logo eles vão ao ar. Se estiver morrendo de tédio e sentir que ler meus percalços cotidianos possa ser uma boa ideia, prestigie!
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :)
Se você respondeu a edição anterior, obrigada! A resposta chega em breve, pois estou em fase de adaptação ante mudanças recentes. Se você gostou desta cartinha, compartilhe e ajude a espalhar o trabalho desta humilde produtora de conteúdo.
Beijos e até a próxima (e última) edição!
Me despeço com esta linda imagem em Kinderdijk, enaltecendo as condições meteorológicas deste país, que são sempre perfeitas!