Eu sou um corpo, um ser, um corpo só
Tem cor, tem corte
E a história do meu lugar, ô
Eu sou a minha própria embarcação
Sou minha própria sorte
Je suis ici, ainda que não queiram, não
i·mi·gran·te
(latim immigrans, -antis)
adjectivo de dois gêneros e nome de dois gêneros
Que ou quem imigra ou vem estabelecer-se em região ou país diferente do seu.
ex·pa·tri·a·do |eis| ou |es|
(particípio de expatriar)
adjectivo e nome masculino
Que ou aquele que reside, voluntariamente ou não, fora da sua pátria. = EXILADO
Volgende halte, Korte Voorhout
Que ruído era aquele? As palavras correram pelos meus ouvidos como se tomasse uma bronca daquelas que minha mãe me chamava pelo nome completo. Quando desconhecemos uma língua por completo, qualquer par de frases soam como interferências. Um pouco como tentar sintonizar uma rádio sem sucesso. Vai além do entendimento do que se é dito: nem sequer é possível identificar uma palavra. O comboio parou em pelo menos dez pontos, que acompanhei pelo letreiro luminoso, mas só me atentei ao som quando ouvi o último, onde deveria descer.
Experimentava minha fase inicial, quando a realidade já não é tão amorfa e recebe as primeiras camadas de naturalidade. Era preciso atentar-me a todos os sinais possíveis, pois embora “todo mundo” falasse inglês, os anúncios, placas e toda forma de comunicação oficial do país era — ou melhor, ainda é — em holandês.
Vale frisar que naquele momento não saberia pronunciar o nome da minha rua de forma compreensível, o que me colocaria em maus lençóis caso me perdesse. O meu namorado, que chegou meses antes e talvez já tivesse apreendido muitos desses códigos iniciais, estava comigo. Queria, todavia, provar a mim mesma que conseguiria prestar atenção aos arredores e realizar tudo por conta. Resquícios de dois anos morando sozinha na França.
Já era noite desde às quatro da tarde, e eu retornava de uma das primeiras visitas ao grande blocão de gelo da EPO. No cenário ideal estaria de volta após um dia de trabalho, mas o motivo da minha presença no Escritório de Patentes Europeu eram as aulas de holandês.
Naquele longínquo fevereiro, quase dois meses após minha chegada, ler e ouvir holandês provocava calafrios. Não porque achasse a língua feia, ainda não tivera tempo para formar uma opinião, tampouco estava em posição para emitir julgamentos. Era, entretanto, um lembrete constante de que eu ainda não tinha emprego e que a minha falta de conhecimento da língua era fator limitante.
A angústia batia na porta quando pensava no quão desafiadora foi a adaptação quando parti rumo à minha primeira aventura num país estrangeiro tendo domínio pleno da língua. Anos estudando francês e buscando imersão no universo dos r aspirados como podia, uma prova de proficiência e a dita fluência ajudaram. Houve preparação para ter experiências numa língua que não era materna.
Agora, todavia, estava em queda livre, experimentando todas as variantes possíveis de insegurança num país onde até a língua era estrangeira.
Digo há muito tempo que tirei nota máxima em autoconhecimento. Todos os anos de psicanálise ajudaram-me a crescer muita convicta de quem sou. Este domínio de si ajuda a ter os pés no chão e ter um norte em realidades diferentes do meu local de origem. Mesmo quando exposta a novas realidades e imprevistos, conheço o caminho de volta para mim.
Admito, no entanto, que uma importante parte minha foi colocada em jogo quando enfiei minha vida em algumas sacolas e parti ao encontro de novos CEPs no além-mar. Não rasguei o meu RG, todavia vi a minha personalidade ser posta em jogo quando iniciei uma busca pelo lugar do meu passaporte azul numa nação europeia.
Haja jogo de cintura! Dei corpo a inúmeras personagens em uma só. Pois descobrir meu lugar no antigo continente, eu queira ou não, envolve interpretar, testar novos personagens, e no meio desta desordem descobrir novos traços de personalidades (às vezes revestidos) que se encaixam na nova realidade.
Até mesmo o tom da minha voz se altera quando me comunico em outras línguas. Como se até pela fala eu buscasse algum encaixe em território estrangeiro.
Na primeira etapa fui vestida de mestranda na França. Com visto de estudante e francês fluente na bagagem de mão, num momento repleto de experimentações. Após sete anos no mercado de trabalho, precisei reconstruir uma Lidyanne estudante com disposição para mergulhar numa área nova. Tudo isso estudando paralelamente os códigos do país e de uma juventude bem diferente da brasileira.
Enquanto tentava entender qual era a desta minha versão, não soube recusar quando surgiu uma oportunidade para trabalhar em tempo parcial aos fins de semana.
Passei de vigia a guia de um museu em poucos meses, um pequeno carinho no meu ego. Era como se validasse minha capacidade de ser uma adulta funcional, apta a aprender algo novo do zero e fazê-lo com excelência em língua estrangeira.
A empolgação foi tão grande que talvez tenha negligenciado um pouco o meu mestrado. É duro abdicar do desejo de trabalhar e ter uma remuneração, pois me enchia de agonia passar um período com a cara enfiada nos livros, dependendo do auxílio dos meus pais e, eventualmente, do governo (CAF, vou te amar para todo o sempre). A cria do capetalismo queria abrir a conta do banco e observar o depósito do suado dinheiro a cada mês.
Apesar de alguns desmoronamentos ao longo de dois anos de mestrado, realizei um estágio — etapa obrigatória para validar o diploma — e tudo parecia se encaminhar para um futuro profissional sólido como tivera no Brasil. Abordo o tema de forma muito superficial, pois só eu sei quantos percalços acumulei nesta estrada esburacada. A vida deu então um chacoalhão forte, me apaixonei e embarquei rumo à segunda temporada, ainda mais complexa e doida: ser dependente num país onde o meu domínio da língua local era zero. Naquela altura não imaginaria que uma pandemia atravessaria o caminho três meses depois da minha chegada, porém cá estamos.
Esta pessoa tão segura de si, consciente das próprias capacidades e que até então se via como alguém de uma potência inominável se viu tal qual um bicho acanhado, com cada centímetro do corpo coberto de inseguranças.
Uma categoria de vulnerabilidade difícil de admitir e aceitar. Não posso fazer-me cega ante diversas desigualdades, tampouco posso desconsiderar a desvantagem estatística de ter um passaporte do Mercosul em território europeu. Nada mais normal. Existe um acordo político que coloca qualquer detentor de um passaporte vermelho em vantagem. O mesmo serviria para um holandês que se mudasse hoje para o Brasil.
O mais complexo deste processo é colocar isso na cabeça. Aprender a ter paciência, lidar com o ritmo natural das coisas. Ninguém chega pronto, e enquanto integrante do Mercosul chego em clara desvantagem.
A cada reação exclamativa de um local ante as minhas tentativas parcas de falar holandês, ou quando eles tiram sarro de um erro meu em inglês, acabo a ruir um pouco por dentro. Sinto-me um extraterrestre.
Não existe meio-termo na experiência estrangeira.
Meu caminho já cruzou com pessoas que ficaram admiradas com minha força de vontade e coragem em ter abandonado o meu local de origem. Me deparei, todavia, com muita gente que fez questão de diminuir-me e dizer que dificilmente teria o conforto profissional que um dia tive no Brasil na França ou na Holanda, pois quem nasceu nestes países sempre há de ter preferência. Vira uma espécie de competição desnecessária, hora com outrem, hora comigo mesma, que neste processo me pego constantemente em busca da minha concha perdida, desesperada para me esconder nela até me sentir pronta.
Como se existisse isso de estar pronta.
É fácil ver um europeu se encantar com a malemolência de um brasileiro. Temos ginga, um aspecto sedutor e acolhedor, mesmo os mais brutos são afetuosos. Apesar das diferenças culturais me conectar com europeus nunca foi difícil, ao menos para amizades. Para qualquer conexão informal, tudo costuma fluir. Os preconceitos e julgamentos aparecem de forma muito sutil, nos detalhes. A intenção deles não é ferir, os comentários brotam na espontaneidade — mas afeta quando você se vê num lugar inferior.
No decorrer destas travessias encarei meu passaporte e me perguntei se escolher um nome ajudaria a aliviar angústias existenciais.
Afinal, sou imigrante ou expatriada?
Talvez nem tenha tanta importância contestar e escolher um adjetivo, a vida pode ser mais leve sem rótulos, mas a questão semântica está na origem dos meus conflitos de identidade desde a mudança. O estigma do estrangeiro é detestável, nem deveria existir. Estamos neste mundo batalhando para existir independente da cor do nosso passaporte. Todavia esta característica tem o seu peso, e quando já estou cansada de buscar justificativas acabo apelando ao “é porque sou brasileira”.
Desde quando ser brasileira passou a ser defeito, pergunto-me. E onde já se viu isso de colocar a minha origem como explicação para o fracasso?
Entre muitos percalços, e após assumir este absurdo, hoje luto pela reinvenção. Tenho me agarrado a mim, num processo de escavação constante para resgatar o que tenho de mais precioso e reinventá-lo dentro da minha realidade atual.
"Sou minha própria embarcação". Brasileira, expatriada, imigrante, estrangeira. Conheço tudo que carrego comigo, meu aprendizado de anos, minhas vivências. Tudo que construí é riquíssimo, tem o seu valor, e talvez uma hora eu aprenda a mostrar esta preciosidade com o mesmo brilho a quem me vê pela primeira vez.
Já faz tempo, eu sei.
Me encantei pelo meu projeto antes mesmo de redigir a primeira carta. Enquanto realizava as atividades do curso da Aline Valek no Domestika passei por momentos maravilhosos enquanto definia os temas de cada edição. Tomei nota do que não poderia faltar e enchi o papel de referências que me guiaram na hora de sentar para escrever.
Teve edição que só saiu no papel, outras que nasceram e foram editadas sem dificuldade num arquivo do Google Docs, e até mesmo uma que terminou engavetada. Todo conteúdo destas quatro edições foi escrito com muito carinho e dedicação.
Um dos rascunhos da segunda edição da newsletter
Dei corpo físico ao rebuliço que é morar no exterior e se sentir estrangeira a todo tempo. Não sei até que ponto estas construções atravessaram alguém, mas espero que as palavras reunidas nestes textos sigam a circular e potencialmente ajudem quem se sente de forma similar e precisa de acolhimento.
Entre um percalço e outro pensei que nunca mais fosse parar ante o rascunho da última edição para editá-la com a atenção merecida. Por ser um tópico ainda mais sensível que o das cartas anteriores, o processo se prolongou mais que o esperado.
Deixo o meu muito obrigada a quem acompanhou o Estrangeirismos! A caixinha de email está de portas abertas para quem quiser trocar ideia, compartilhar opiniões e me dar sugestões de melhorias.
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :)
Quem sabe não nos encontramos numa segunda temporada? ;)