Estrangeirismos # 5 - Do alto da montanha
O trail mais desafiador (e surreal) da minha vida
(Se preferir, você pode ouvir a newsletter lida por mim no link acima!)
Partidas ao estrangeiro são banhadas em deslumbre. Novidades provocam este misto de medo com encantamento, enjoo de excitação. Ir com os olhos vendados carregando a bagagem com o coração ajuda a moldar um castelo de expectativas, seja esta construção visível ou não. Comigo foi desvelado. Desenhei todos os cenários possíveis e me despedi acalmando as pessoas ao afirmar conhecer muito bem os franceses. Ademais, tinha à época 26 anos e a convicção de ser uma adulta funcional. Me acreditei pronta para encarar qualquer baque, portando minha armadura de quase três décadas vividas.
Tudo ocorreu ao inverso das expectativas, contudo atravessei cada etapa de peito aberto. Ter mais idade e vivências, no fim das contas, ajudou. No meu primeiro mês de terapia, nos idos de 2015, tive uma sessão inteira falando sobre "sentimentos ruins", onde discorri minhas aflições ante qualquer manifestação de ódio. À época eu era uma pessoa cheia de receios, com medo de ferir os outros, e incapaz de manifestar qualquer sentimento com carga negativa.
Na França entendi de uma vez por todas a importância de dar vazão a tudo que por anos deixei cozinhando e me causando azia. Houve espaço para o ódio, a angústia, a felicidade, e o prazer executarem uma coreografia curiosa de dança contemporânea. Não faltei respeito, tampouco agredi pessoas fisicamente. Entretanto, não deixei passar batido. Desaprendi o ato de engolir desaforo - deixei todos órfãos pelas ruas das cidades onde passei.
Aprender a me afirmar e reforçar meu valor enquanto ser humano virou quase uma missão. Ser imigrante, pra mim, é essa sequência de tapas na cara que me lembram do meu valor. Se passei tantos anos, quiçá minha existência inteira, questionando minhas qualidades, em terras estrangeiras vi cada um desses pontos ser esmagado à minha frente. Fui forçada a recolher os cacos e olhá-los com cuidado antes de traçar um plano de reparação.
Cinco anos. Meia década.
E se minha versão de cabelos castanhos com luzes tivesse ficado no Brasil? E se minha versão com dez quilos a menos tivesse ficado na França ao invés de partir para a Holanda?
Fantasio pensando em todas as narrativas que decisões distintas poderiam ter rendido. Visualizo cada uma enquanto observo toda a trilha percorrida do alto da montanha. Esbaforida, exausta, e no entanto tão satisfeita.
Mordi o limão, mastiguei o azedo entre os dentes, e mesmo assim fiquei. Dia após dia.
Eu juro, não sou masoquista. Jogo a culpa toda na teimosia que adora me botar a teste.
Em 28 de agosto de 2017, abracei meus pais e dei as costas para esconder o rosto rubro tomado por lágrimas. Desembarquei de passagem numa Paris cinza e quente no dia seguinte. Com tempo suficiente para compensar o sono perdido do voo, e pegar um trem no dia seguinte para chegar na estação errada de Montbéliard no dia 30. A vida dobrada em malas e mochilas pesadas, a cabeça ponderando a escolha de um mestrado neste lugar com acessibilidade limitada, e àquela altura sem ao menos saber se encontraria um teto para morar.
Cinco anos me foram necessários para ter aquilo rotulado de ‘vida normal’ no meu segundo país desde a partida do Brasil. Dois países, um mestrado, um amor, e agora um emprego de segunda a sexta para garantir o pão nosso de cada dia.
Ouço a voz da minha mãe repetindo que não sou todo mundo. Ela sempre soube. E a conta-gotas tentou reforçar o caráter único da minha história. Impossível saber dos devaneios de cada um, assim como é tolo da nossa parte querer comparar a forma como traçamos linhas nos mapas com a dos outros. Tentar obter um padrão, criar uma fórmula mágica a ser seguida, e ficar questionando como o fulano conseguiu ‘chegar lá’ enquanto o sovaco da sua camiseta se enche de suor numa tarefa que te é detestável. Esses atos aos quais nos rendemos no desespero de achar nosso lugar no mundo, mas que no fim das contas só servem como um processo infinito de auto-mutilação.
Nestes cinco anos completos longe do território brasileiro, o semáforo ficou verde e depois de olhar para os lados acelerei sem sentir frio na barriga. A carga do coração encheu, porém não pesa mais.
Diversos lembretes não me deixam esquecer que não sou daqui. Agora, porém, consigo pegá-los sem receio. Agradeço, e sigo dando meus passos singelos, me abalando cada vez menos. E hoje, mais do que nunca, meus olhos brilham encarando uma trajetória tão única. Tão minha.
Escrevo esta nota encarando o docinho em formato de mini-bolo comprado para esta ocasião. Um ano após o envio da primeira edição do Estrangeirismos, cinco anos depois de chegar ao continente Europeu, tenho muito a comemorar. E convido você, que me lê, a celebrar comigo. A repensar o tempo corrido e observar com carinho cada fato importante, cada conquista, cada símbolo que vocês construíram enquanto eu moldava meu caminho por essas bandas.
Use este convite para te celebrar, assim como vou me celebrar agora.
Espero que esta carta seja um incentivo. Que ajude de alguma forma a despertar uma faísca, uma pulsão para acreditar no seu potencial e se agarrar com afinco a essa força e nunca desistir.
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :)
Um beijo e até a próxima!