Estrangeirismos # 8 - Inversão de papeis e curadoria do museu da minha vida
Turistando nas origens
Tô ensaiando a despedida
Mesmo tendo outros planos
Trato a saudade do Brasil com doses cavalares de Gal Costa e Caetano Veloso. Outras vozes se misturam às deles nas minhas playlists bagunçadas e um tanto repetitivas, mas os citados prevalecem. Recorro a eles quando o mormaço e a minha língua materna me fazem mais falta. Não apenas pelas letras e tudo representado nelas, mas sobretudo pelas lembranças acumuladas ouvindo músicas deles pelas ruas de São Paulo quando ainda chamava a metrópole de casa.
Funciona como mágica, pois um filme logo se projeta na minha mente reunindo os melhores momentos daqueles sete anos, fosse sozinha ou rodeada de amigos. Ouvir (sobretudo) Gal Costa até cansar nos primeiros meses morando na França foi um meio de prolongar aquelas cenas. Teve muito “tudo certo como dois e dois são cinco” enquanto tentava encontrar e entender o lugar por mim ocupado em terra estrangeira.
Gal é, para mim, a definição de brasilidade. Tenho orgulho em pensar nessa voz tão única e potente contando muito da nossa história.
Tinha um tema em mente ao começar esta carta, mas não poderia falar sobre nada sem antes mencionar o quanto doeu saber do falecimento deste ícone da música brasileira. Em tempos de fake news em alta, confesso, bem desejei que fosse uma notícia falsa, acidente jornalístico. Meu coração vagabundo se acalma, contudo, ao me lembrar que apesar da sua ausência física, a voz de Gal seguirá firme conosco e jamais será calada. E essa intensidade toda carregada por elas em letras e voz ainda há de correr em nossas veias por muitas gerações.
Após um ano inteiro com Da Maior Importância no repeat, dois anos e meio depois da minha última visita, desembarquei em São Paulo nos suspiros finais de 2021. Exceto pelas entradas sem nexo nos diários, ainda não havia me sentado para tentar organizar a experiência desta breve passagem em território brasileiro.
Visitar o Brasil é uma ressaca intermitente.
Ou, conforme carinhosamente nomeio, um quiprocó de sentimentos. Minha terra natal virou este espaço transitório, um sopro de duas a três semanas onde cada minuto parece insuficiente. Chego esfomeada, querendo engolir cada pedacinho de tudo que perdi no período passado fora. Devoro sem dosar o ato, e em menos de 48h tenho indigestão. O corpo pedindo para pegar mais leve e tentar curtir em doses homeopáticas.
Diferente dos escapes intermediados pela música, agora estava tudo ao alcance dos olhos e das minhas mãos.
Prestar atenção nos atos e tirar o pé do acelerador é custoso. Flutuei na confusão entre a percepção de que nada mudou e a surpresa diante de tantas mudanças. Precisei primeiro assimilar o mundo ao meu redor nos detalhes. Sair de um avião após doze horas causa tontura, e o caráter nada original dos aeroportos não ajuda.
Passados dois anos e meio e me reconhecendo enquanto pessoa desmemoriada, foi surpreendente percorrer as ruas do centro de São Paulo no dia seguinte com tanta facilidade. Guiei meu parceiro pelos pontos turísticos e passagens comuns da minha vida pregressa sem consultar o mapa um segundo sequer. Não porque tivesse medo de ter o celular roubado, mas por conhecer aqueles cantos como ninguém.
Em algum momento do fim daquele dia ele comentou o quanto eu era diferente naquele solo conhecido. Embora nunca tivesse reparado, ele estava certo. A Lidyanne brasileira tem pulso firme, não se acanha, e tampouco se sente inferior. É um alívio saber que corre no sangue dos transeuntes a mesma brasilidade, temos um pacto comum e invisível, traços intrínsecos a qualquer pessoa nascida e crescida naquele território .
Me senti gigante numa São Paulo em miniatura. Fui Lana del Rey no videoclipe de Doin’ time, caminhando entre os prédios e entre uma realidade estacionada em 2017 no centro antigo da Paulicéia Desvairada. O teto do antigo apartamento onde morei foi sempre assim tão baixo? Essas roupas tão pequenas me serviam? Ainda tenho tudo isso de cadernos em brancos juntando pó? Quando foi que comprei este livro que nem mesmo tirei do plástico?
Observar brevemente os detalhes de onde morei cinco anos atrás foi como percorrer os corredores deste local onde, ainda sem curadoria, vestígios de sete anos de vida perambulavam pelos cantos.
Não houve espaço para assimilar muita coisa, pois viajaríamos para Campo Grande no dia seguinte. Era a travessia das travessias, um pernoite que serviu de amostra do que seria uma visita guiada pelo museu da minha vida.
Menos de 24h em solo brasileiro foram suficientes para notar o quanto esta meia década morando fora me esfriou. Contudo, conforme me encontrava nas entranhas daquela metrópole, também tinha uma afirmação de quem eu sou: uma brasileira deveras emocionada.
Sinto tudo em dobro, sou o copo do boteco que acidentalmente transborda.
Chegar num local onde todos falavam português com naturalidade e onde todos os códigos eram familiares me fez prestar atenção na minha respiração, e então inspirar e expirar sem dificuldade. Deste ponto adiante abri a porteirinha da emoção e permiti ao caos adentrar sem freio. Feito trem desgovernado. Os amores, as faltas, os ranços, os contratempos, tudo foi se atropelando e ficou difícil dizer se o ser atuante do momento era a pessoa do presente ou aquela que dobrou a vida dentro de duas malas e debandou cinco anos atrás.
Pensar em Gal Costa e sua música como trilha sonora de tantos momentos foi um mergulho na nostalgia. Me transportou para Dezembro de 2021, enquanto visitava esta espécie de museu da minha vida e preparava o coração para o que viria pela frente.
Criar raízes do outro lado do oceano exige ceder à casca dura construída para sobreviver num lugar estranho de tempos em tempos. Às vezes é preciso mexer na ferida, trocar os pontos. Desencaixotar memórias recentes rasgando a camisa e enxugando o pranto.
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Um cheiro e até a próxima!
eu, que tô aqui pelo centro de SP, vou amanhã sem falta caminhar no minhocão com esse olhar de preciso matar saudade da minha terra.
😍😍😍 que texto mais lindo!