Estrangeirismos # 9 - Transparente tal qual água de rio tranquilo
Museu da minha adolescência
[ Para ouvir ao som de Maggie Rogers - Fallingwater ]
Antes de completar dez anos, só havia passado por Campo Grande para nascer. Após pingar em três municípios do interior do Mato Grosso do Sul, me instalar na capital representava algo nobre para minha cabeça de pré-adolescente. Cheguei com a ideia pré-estabelecida de civilização, onde as pessoas teriam espírito livre, menos preconceito, e muito conhecimento a compartilhar. O olhar preconceituoso e um tanto óbvio de quem vive no interior e considera aquele pequeno universo limitado demais para o tamanho dos próprios sonhos.
Todavia, não foi bem assim.
No verão deste ano, fiz uma trilha que serve de analogia a como vejo minha adolescência. Um percurso íngreme, tortuoso, com diversas etapas desafiadoras e perigosas. A vista, contudo, é linda. Existe algo puro e único em observar a cidade e as imediações encolhendo na mesma medida em que os sons urbanos desaparecem e são substituídos pelo barulho de animais se deslocando. Balanceando os altos e baixos do percurso, fazer uma trilha é tão doloroso quanto revisitar a fase dos 10 aos 17 anos.
Tenho uma caixa repleta de memórias das mais belas, destas dignas de se apreciar com o coração cheio. Muitos traços importantes de personalidade foram firmados naquele período. Contudo, enquanto me entendia com eles, alimentei a ilusão de que deveria me desdobrar para conquistar a simpatia de todos, inclusive de quem não era compatível.
Era uma briga interna infinita. Por mais que me doesse desapontar alguém com atitudes ou mesmo com meu físico, não queria me encaixar naquelas fôrmas. Comecei a ouvir Silverchair e batia no peito dizendo 'I am a freak of nature' enquanto carregava os livros de Stephen King pra lá e pra cá. Era coerente com a personagem gótica trevosa, que me era super conveniente, mas também garantia um bullying pesado. Era a esquisitona da turma. Pois onde já se viu uma menina de 13 anos que não usa maquiagem, odeia festas, não cuida do corpo e não faz escova?
Eu não tinha o menor desejo em aparecer, apesar das cobranças de autoafirmação. Embora ainda carregasse em mim muita dor e escuridão, passei por uma fase mais colorida. Em outras palavras, virei emo. Usava franjinha de lado, munhequeira, all star de cano de alto. Virei uma patricinha que ouvia rock.
O processo de refinamento de personalidade seguia em curso, e esta talvez tenha sido uma das fases mais felizes da adolescência pois pude enfim me afastar do núcleo escolar. Conhecer pessoas com realidades tão diferentes foi uma iluminação. Naquele balaio de universos distintos, ver alguns amigos se assumindo gays foi um bálsamo para a minha alma: me alegrava ver pessoas tão queridas se livrando de amarras sociais e perdendo o medo de viver a própria essência.
Ainda era ingênua demais para considerar as muitas batalhas que eles enfrentariam dali adiante, mas vê-los dar um primeiro passo para dentro de si e na contramão de uma sociedade tão conservadora era bonito. Serviu de incentivo para ressignificar muitas das minhas ditas "esquisitices".
De alguma forma, pois mais bobo que possa soar, eu me sentia especial por entender o lado deles e oferecer suporte. Foi o suficiente para me tirar do buraco no qual me enfiei quando ainda era gótica trevosa.
Pode-se dizer que, ao menos por um curto espaço de dois anos, o emocore me salvou.
O problema foi seguir carregando tanto rancor pelo meu local de origem e então lar. Minhas experiências basais foram incapazes de ajudar a construir qualquer laço afetivo. Naquele ponto abracei outra personagem: a moça oriunda do Centro-Oeste colocando São Paulo num pedestal. Minha meta era ter capacidade de juntar minhas coisas e me instalar naquela metrópole promissora, onde acreditei que me tornaria uma excelente profissional e aproveitaria ativamente de atividades culturais.
Muita movimentação foi necessária para fazermos as pazes. Sete anos em São Paulo e mais cinco na Europa, para ser mais precisa.
Tomei a iniciativa de apresentar Campo Grande a quem sabe da minha existência há três anos e meio, e sem querer consegui enfim olhá-la por outro viés. Até dei um passo adiante e mostrei um pouco de Bonito e Bodoquena. Reforçar as riquezas locais deste Estado quase sempre esquecido era estratégico. Funcionou para ele, e sobretudo para mim. Nunca foi culpa do espaço físico, mas sim da minha imaturidade emocional.
Se um dia houve rancor, ele se esqueceu do caminho de volta até mim. Entre os bairros do meu antigo cotidiano, o parque perto de casa, e outros tantos detalhes deste imenso museu da minha adolescência, houve espaço até mesmo para descobrir meus traços em comum com o Mato Grosso do Sul.
Lembro-me de nadar nas águas do Rio Salobra fascinada, pensando na sorte de ter nascido numa região de natureza tão rica e forte quanto a minha. Ver os peixes de perto naquela água calma e transparente me ajudou a me olhar com a mesma clareza.
Apesar do meu desejo em me esconder durante toda a adolescência, nunca deixei de ser transparente tal qual água de rio tranquilo. Tudo que me era mais valioso estava à mostra, mas houve quem não conseguisse enxergar e tampouco estivesse disposto a me acolher nesta jornada que chamamos de vida.
Pisar na casa onde cresci antes dela ser vendida neste ano foi uma reparação com as minhas origens. As memórias vão se espalhar com todo carinho por fotos e textos como este, e o meu eu adolescente pode descansar em paz. Ela soube aproveitar e guardar o essencial para que a versão adulta pudesse voar mais alto.
Algo aconteceu ao enviar a oitava edição da newsletter. Ganhei novos assinantes, recomendações e comentários. Fiquei alucinada de tanta alegria com o retorno. É gostoso demais chegar a pessoas de forma “orgânica”, atingir olhos que não sejam dos meus amigos já acostumados comigo pentelhando para lerem meus rabiscos. Obrigada demais pelo carinho. Minha retribuição chega em breve, pois além das respostas aos comentários, quero conhecer as newsletters de quem me lê. Apareço em breve!
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!