[Edição #43]
Debruçada no topo do dique, fitando a corrente, dei-me conta de que, apesar de todos os perigos, tudo o que está em movimento é sempre melhor do que aquilo que está em repouso, que a mudança é mais nobre do que a estabilidade, que tudo o que estagna acabará por sofrer decomposição, degeneração e transformar-se-á em pó, enquanto aquilo que está em movimento consegue durar eternamente.
Olga Tokarczuk, Viagens
Percorro a cidade fantasma dispensando a blusa térmica entre as camadas fundamentais de vestimenta no inverno. Amigos alertaram sobre o frio de lascar, desconfio ter tido sorte. Até os locais pareciam decepcionados com as temperaturas amenas, correndo atrás da neve e oportunidades últimas de esquiar com dias iluminados até às sete da noite. No retorno encerra a farra, quando fecham as estações dedicadas aos esportes de inverno. Como é costume, após o feriado de páscoa vão enfim colocar os caminhões na rua para recolher os cascalhos que cobrem as calçadas e ajudam a reduzir o impacto promovido pela neve e eventuais blocos de gelo.
Ao adentrar o espaço onde fica o Akershus Castle, tive a impressão de ouvir salva de palmas, mas era puro estardalhaço de nossos calçados avançando sobre o amontoado de pedrinhas. Apesar do painel avisando para não interagirmos com as raposas selvagens que vivem no parque que circunda o castelo, infelizmente nenhuma cruzou nosso caminho. Mesmo esse punhadinho de gente deve ser abundante demais para elas.
Até uns cinco anos atrás, meu conhecimento de Escandinávia se limitava a IKEA e aurora boreal. Também tive contato mínimo com escritores locais. Todos muito focados em escrever a vida, onde aspectos psicológicos dos personagens pareciam refletir ao menos em parte o que é estar exposto a vinte e duas horas de luz do dia no verão e só cinco no inverno.
Da Noruega em particular, só sabia do Grito de Edvard Munch. Serviu de fundo de tela no celular por anos. Também já tinha lido Karl Ove Knausgård e Henrik Ibsen, e conhecia algumas músicas da Aurora. Alguns amigos visitaram o país em momentos distintos e roubei a ideia, apropriando-a num feriado ideal para exacerbar os sentidos de deslocamento.
Era uma desculpa para desligar o cérebro dos cestos de roupa suja e da pia da cozinha entupida enquanto me praguejava por escolher um voo tarde da noite. Xinguei ainda mais ao aterrissar, encarar a escuridão e não achar energia para me entender com o transporte público local quando o relógio batia 11 da noite. Chove reclamação. No fundo, contudo, bastante me interessa o desconhecido. A um amigo disse, na brincadeira, que ia a Oslo estudar como vivem os ricos.
Teve conforto o silêncio humano e a sinfonia de cascalhos, o anonimato e as longas horas percorrendo corredores de quatro museus diferentes. Pintores locais e outros que por cá se fixaram em algum momento caíram de amores pela luz norueguesa, presença mais marcante nas pinturas. Em 385.207 km² de extensão e densidade demográfica baixa (em 2022, a população era de 5,457 milhões), não surpreende que tenha sobrado tanta vontade de retratar os silêncios da natureza norueguesa. Alguns destoam desse marasmo, como Munch, que arriscou brincar com as cores e deixou até a melancolia meio alegrinha. Interessante estar num país cuja arte mais famosa é a tela de uma criatura gritando.
Também para variar do ordinário deixam a criatividade aflorar nos prédios de arquitetura original. Autorizaram essa loucura toda borrando os limites do céu, em construções assinadas por arquitetos locais e estrangeiros. Gosto em particular da nave espacial da ópera , criação dos Snøhetta, e de poder percorrer suas extensas rampas e observar a cidade do alto. Monumento do qual pude aproveitar apesar do feriado e da falta de atrações do lado de dentro.
Comer custa caro, mas impressionou a quantidade de Fedora e Woosh (as variações deles do iFood) que vi circulando nas costas dos ciclistas pelos cantos, mas sobretudo perto do hotel onde me hospedei.
Em pouco mais de 48h, as obrigações passaram batido e só demandei um pouco de concentração quando precisava me localizar. Apesar das doses de cultura e história, serviu como exercício de esvaziamento mental. Como numa instalação de arte contemporânea, sentei-me com as palmas das mãos repousadas sobre as pernas e fiquei a brisar, criar histórias aos transeuntes que atravessavam o caminho. Nas horas de caminhada deixei no hotel os fones de ouvido, pois estava interessada nos ruídos das cidades.
Há alguma lei que proíbe gatos na rua? Não notei um bichano sequer a escorregar pelos cantos, em contraste com os cachorros que despontam até mesmo no hotel.
“Meus dias viajando sozinha foram o primeiro passo para entender que é horrível reprimir sentimentos por medo de passar vergonha. Ou, pior ainda, por receio de julgamento. Ninguém tem nada com isso, ninguém sabe da sua história para tentar diminuir sua sensibilidade. Ainda briguei muito com isso, porque eu odeio expor qualquer sentimento que remeta à fragilidade, mas vejo que no fim das contas perdi de vez essas amarras. Tá permitido chorar no ônibus, desabafar as dores com as amigas, escrever uma carta à mão para quem você nunca mais vai ver, dar uma latinha de brownie para a autora de um texto que te tirou do buraco em um dia ruim. Hoje consigo olhar para essas coisas e me sentir feliz pela vitória – eu senti. Deixei minha vulnerabilidade à mostra, consegui dizer sem gaguejar e sem cometer nenhum ato falho: eu não posso controlar os meus sentimentos.”
Lidyanne Aquino, vulgo eu mesma, em “Takeoffs and landings”, da extinta newsletter que mantive no TinyLetter por um tempo. Sim, estou referindo-me a mim mesma, a que ponto chegamos???
Estava às vésperas de comemorar 24 anos quando viajei sozinha em território estrangeiro pela primeira vez. Planejei com recursos limitados, tanto emocionais quanto financeiros, duas semanas entre Bruxelas, Berlin, e Amsterdã. Com exceção do último destino, onde um amigo me aguardava, aprendi a me fazer companhia enquanto desbravava lugares novos sozinha.
Daquela viagem, levei o aprendizado de desinibir a sensibilidade. Acompanhada do barulho do meu caminhar, chorei largado quando me emocionei, fiz dancinhas no meio da rua, pedi um band-aid a uma moça aleatória no meio do museu, cantei num karaokê no meio do parque e de um monte de desconhecidos. Parei de colocar barreiras no meu sentir e aproveitei a ausência de companhias familiares para ser eu mesma. Como se nunca tivesse ouvido falar de insegurança.
Esse passeio talvez nem saiba, mas foi pontapé essencial para o início de uma longa caminhada de psicanálise. Queria saber mais sobre aquela versão alheia a julgamentos e se tinha jeito de cultivá-la.
Desde então, tropecei em múltiplos percalços, fiz uma curva da psicanálise, troquei de psicóloga duas vezes. Viajei com amigos, com meu parceiro, e fiz um único passeio sozinha para Madrid. Quando brotou a ideia de me refugiar por uns dias em Oslo, estava saudosa do movimento solo de descoberta rumo ao desconhecido.
O corpo queria experimentar a barulheira dos silêncios percorrendo os pensamentos. Prestar atenção na minha percepção sem influência do olhar alheio, navegar nesse entendimento incipiente de um local até então nada familiar.
Oslo me recebeu com o mesmo céu emburrecido da Holanda, toque nada sutil de que talvez precisasse de um momento com meu lado introspectivo. Mudar de cenário, pero no mucho. A aventura sem propósito aparente me lembrou do quanto sentia falta da sensação de tomar decisões por conta. Sem a necessidade de alinhar com outras almas, bastando apenas o desejo de ir à rua ver como a banda toca.
E o que fica dessa experiência?
Viagens não precisam de propósito ou justificativa. Sendo honesta, às vezes queria ter condições financeiras e desapego suficiente para escolher destinos de modo aleatório e deixar que a própria cidade me conte o que fui buscar.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, sinta-se em casa! Agradeço pelo suporte e por me receber na sua caixa de entrada a cada duas semanas. Espero que encontre conforto nesses escritos. Te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último domingo de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro e até a próxima!
que delícia viver essas experiências transformadoras, só nós com nós mesmas, não é? e que beleza Oslo, fiquei com vontade de conhecer haha!
Fiquei pensando como o clima deve afetar a vida de quem mora lá. Nunca valorizei tanto um solzinho desde que mudei pra “terras mais frias”, e olha que o clima nem chega perto da Escandinávia