Há sol na Holanda. E tem mais: pela primeira vez em 2023*, ele faz hora extra e também esquenta.
Isso talvez te soe óbvio. À exceção dos dias de outono, mais frescos e de céu limpo, sol no céu é sinônimo de calor e protetor solar no rosto. Contudo, aprendi a duras penas que essa regra é exceção quanto mais ao norte se sobe no mapa-mundi.
Hoje é domingo. Pede pés na rua e pedaladas até a praia. Sentir a brisa marítima embaraçando os cachos enquanto reponho a vitamina D de 365 dias. O suéter voltará ao fundo do armário, as mangas compridas serão substituídas por camisetas e regatas. Quero mais é que o cachecol junte pó ao lado dos casacos mais pesados.
Quando cheguei aos Países Baixos quatro anos atrás, ria na cara dos holandeses. Bastava sair um raio de sol durante o inverno para vê-los transbordar pelos terraços da cidade. Os mais preguiçosos arrastam uma cadeira na frente de casa e ficam a admirar a vida acontecendo. Apesar do Oceano que os separa do Brasil, me remete um tanto aos fins de tarde em Cassilândia ou em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Ao menos nos anos de minha infância, era comum observar vizinhos agrupados na calçada, sentados em cadeiras de plástico e dividindo o tereré enquanto contam causos.
Cresci no Brasil, esse remelexo para se expor ao sol parecia descabido. Frise bem, parecia.
Pois paguei com a língua ao longo da pandemia e decorridos alguns anos. Agora mesmo os braços já estão de fora, e a garrafa com água gelada pronta a transpirar na praia. Num país onde ventania, chuvas e céu acinzentado prevalecem, qualquer tarde ensolarada é convocação desesperada para sair de casa e passar horas em canto aberto e exposto.
Aquela consulta marcada há meses vai ter que esperar mais um tempo. A última reunião do dia também vai ficar pra amanhã. Ajusto os planos para não perder o sol no meu jardim ou em qualquer mesa externa de bar.
Sentir ondas de calor tocando o rosto é melhor do que muito remédio. O sol no céu afasta-me de toda a depressão dos meses de inverno. Quase bate uma vontade de abraçar todas as Marijkes e Jeroens e mostrar o céu da boca a meio mundo enquanto tomo um sorvete de iogurte e manga.
Ainda cedo, presa ao hábito detestável de olhar o celular antes de sair da cama, e desconhecendo o sol por trás das cortinas, abri o Instagram. Viajei no tempo rumo a internet do início dos anos dois mil, onde as correntes enviadas por e-mail prevaleciam.
Enxurradas de stories me contaram que algumas pessoas são obcecadas pelo arroz queimado no fundo da panela, e outras colecionam secretamente menus das barraquinhas de praia. E teve quem declarou que cheiro de terra molhada é algo muito aleatório para se amar.
Pensei no que entraria na minha seleção. A lufada de ar quente no desembarque do aeroporto de Guarulhos, enquanto me livro de camadas de casacos. O momento em que compro o primeiro pão de queijo ao desembarcar, e a moça pergunta se quero CPF na nota.
É primavera no hemisfério norte, e as águas do Mar do Norte seguem congelantes, a despeito do sol. Mesmo frias, faço questão de molhar os pés enquanto caminho à beira desse mar buscando canto para me sentar e dar cabo ao texto. Sensação tão agradável quanto topar com um riacho para pegar água no meio da trilha nas montanhas. Ou pisar na grama fresca, desviando das margaridas que só nascem no meio dela nesta época do ano.
Outro item essencial à lista é o cheiro de alho refogado. Alerta de comida sendo preparada e lembrança deliciosa da carne de panela com mandioca da minha mãe. O que dizer então da fumacinha saindo do prato antes da primeira garfada?
A Holanda me reduziu a sensibilidade, aqui as pessoas não se encostam nem para se cumprimentar. Vai ver por isso o sinônimo de perfeição esteja nos abraços apertados, sobretudo após meses de distâncias, ou ao fim de dias arrastados que criam bolhas nos pés.
O céu aos poucos ganha tons de laranja, enquanto o amargo gosto da segunda-feira espreita à esquina. Suspirando longamente, bem penso no quanto queria me demorar mais um pouquinho em todas essas coisas boas.
Continuaria a listar outras amenidades até o infinito, como iniciar leitura nova, deitar na cama com lençóis recém trocados e encontrar uma ilustração ou arte arrebatadora no meio de uma feirinha de domingo da Lange Voorhout.
Mas amanhã é dia útil, e no primeiro de maio holandês o proletariado comemora trabalhando. Falta espaço para sonhar e desfrutar da felicidade solar sobre tela.
*Essa crônica nasceu na Mini-oficina de crônica, promovida por Tayná Saez, no primeiro semestre de 2023. Sou suspeita para dizer qualquer coisa sobre a Tayná, pois admiro muito o trabalho dela como escritora E mestre. Deixo o meu convite para acompanhá-la no Instagram e receber informações em primeira mão para as próximas oficinas de escrita promovidas por ela.
Deixei essa publicação programada para ser enviada durante as minhas férias, porque achei apropriada para o momento. O sol na Holanda é uma atração e tanto e esse texto serve quase de wishful thinking para quando voltar pra casa. Vai ter briga se não tiver sol.
Vamos continuar esta conversa?
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Um cheeeiro e até a próxima!
Lendo esse texto debaixo das cobertas em mais uma manhã fria de SP, planejando onde posso tomar meu banho de sol hoje. Agora quero dar uma escapada até a Holanda pra pedalar no calor!
Depois que essa ficha cai a gente já não acha tão bobo aquele monte de personagens nos romances do século XIX que iam se tratar da depressão no sul da Itália porque "banhos de mar e exposição ao sol fazem bem aos nervos" ;-)