Finitudes
[Edição #62]
Percebo a idade encolhendo os vivos tal qual uma cobrança secreta. Para cada ano vivido, tira-se um pouco da imensidão. Pode ser consequência das arrastadas horas de trabalho. Ou desgaste natural de correr testando a nossa capacidade física de esticar mais um pouco o tempo na terra. Indo na contramão do crescimento vertical, vi a coluna da minha avó materna se inclinar na horizontal. Olho fotos de dez anos atrás, comparo com registros atuais, e demoro até encontrar um em que ela esteja de pé.
Apoiada no andador, observo com calma e me pergunto para onde foram os cinco centímetros que não vejo nas fotos atuais. Minguando, comprimiu junto o espaço das memórias. Por vezes não se lembra nem do nome das filhas que ela criou sozinha, após a morte precoce do marido.
Posso gabar-me por não ter pedido nada em altura, mas já precisei lidar com a finitude das minhas vastidões.
Mais jovem, tive braços gigantes e elástico o suficiente para carregar o mundo. No coração ingênuo de vivências curtas, abri os olhos e os poros ao futuro. Vislumbrava estrada se esticando para crescer, aprender, desencalhar a pilha de livros e dar cabo de todos os filmes da Nouvelle Vague e do Cinema Novo. Adolescente fã de grunge, aos cantos com um discman que revezava os discos do Silverchair, Nirvana, e Alice in Chains. Convivendo com a ironia de me ver tão infinita.
Agora, que passo mais tempo rolando a drop down list até encontrar o ano do meu nascimento em formulários, já faço inventário das finitudes. minha perspectiva existencial encolheu. Aceito que aprenderei o que a minha capacidade permitir e resolvi-me com o fato de que não, não vai dar para ver de um tudo até o fim da vida. E isso já não me apavora mais.
Até aprendemos que dá para falar sobre morte com alguma elegância. Pedro Almodóvar provou-me isso com o seu O quarto ao lado (2024). Inspirado em O que você está enfrentando, de Sigrid Nunez, o diretor espanhol jogou cores quentes no clima frio do livro. A história começa no inverno. Ingrid (Julianne Moore), escritora, recepciona uma sessão de autógrafos quando encontra uma amiga que não vê há anos.
Ela pergunta se Ingrid visitou Martha (Tilda Swinton), conhecida em comum acometida por um câncer. Surpresa com a notícia, Ingrid busca notícias e consegue enfim visitar Martha. O primeiro encontro das duas em cena acontece em meio a uma nevasca.
O inverno novaiorquino leva-me ao Livro Branco de Han Kang. É comum relacionar o luto ao preto, e Kang faz um movimento inverso. Ela seleciona alguns objetos brancos e, a partir deles, vive o luto da irmã que nunca conheceu, morta poucas horas após o parto. Muito séria na iniciativa de jogar luz sobre um assunto de suposta obscuridade. No meio dessa claridade, a autora fala bastante sobre variantes da neve e do inverno de doer os ossos da Coréia.
Almodóvar tampouco quis falar sobre a morte sobre a perspectiva da escuridão. Nem se acanha em apostar no colorido. Ele alivia o visual para auxiliar Martha na sua empreitada. Exausta de tratamentos e tomada da certeza que já viveu o que tinha para viver, Martha decide tomar uma medicação que tirará a sua vida. Contudo, não quer estar só.
Convence Ingrid a se hospedar com ela num Airbnb e anuncia que sempre deixará a porta de seu quarto aberta. No momento em que encontrá-la fechada, Ingrid pode saber que é porque Martha deu fim à própria vida. Isso é só a sinopse, está no trailer, mas é o tipo de história em que já sabemos o que acontece no final.
Para mim, um dos maiores méritos do diretor é, assim como a autora do livro que inspira o filme, focar na construção de laços das personagens. No reconhecer desta amizade resgatada, após anós afastada, os criadores da obra discutem brandamente a pesada decisão de tirar a própria vida.
O quarto ao lado é sóbrio, sério, com alguns poucos alívios cômicos.
Pouco a ter com o Almodóvar de antes, que só rodava filmes em espanhol. Vejo neste destoar do frenesi típico da sua filmografia muita beleza. É um espanhol buscando o seu lugar noutro país e, em particular, na cultura norte-americana. Não cabe gritaria, nem pelo tema, tampouco pelo cenário em que está inserido.
Ressoou na experiência de se expatriar. Morar fora é silenciar um pouco da nossa essência e usar recursos que nos ajudem a mergulhar no universo estrangeiro. As cores fortes, que já se estabeleceram como a assinatura do diretor, nunca saem de cena. Mas ele tem em mãos a língua inglesa, bem menos maleável que a espanhola.
Sem termos as mesmas referências de base, vivemos de trocas. Dá para revirar a cabeça estudando a cultura local, e tudo irá por água abaixo no momento em que você quiser provar que também merece um canto daquele solo que para ti ainda é novidade. Ser estrangeiro é pular no abismo e aprender a flutuar.
O quarto ao lado é Almodóvar flertando de forma mais incisiva com o estrangeiro. Talvez tenha sido mais fácil para ele pensar a finitude de mãos dadas com Tilda Swinton, Julianne Moore, distante da pátria e da língua mãe.
No fim da projeção de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, desabafei com meu parceiro sobre o quanto muitos dos estrangeiros do nosso círculo social sabem pouco sobre o Brasil. Pouquíssimo, a ponto de talvez assistirem a esse filme e surpreenderem-se ao saber que houve ditatura militar naquele hemisfério que às vezes até esquecem que existe.
E se não sabem da história do Brasil, como terão um mínimo de bagagem para entender essa bagunça em forma de gente que eu sou?
Faz, portanto, muito sentido que tenha perdido os créditos do filme por estar ocultada por uma cortina de lágrimas. A história do país onde nasci e o cinema de Walter Salles não são novidades para mim, ver os gringos descobrindo o quanto temos para contar, sim. Ver um país todo empolgado por ter enfim alguma visibilidade fora do nosso continente aqueceu em dobro o meu coração expatriado.
Em O quarto ao lado, uma das personagens diz que existem diversas maneiras de viver dentro de uma tragédia. Viver no estrangeiro é um pouco trágico, visto que é necessário pegar a nova realidade pelo pescoço e lidar com a finitude de muito do que um dia nos foi familiar ao mesmo tempo.
A vida do expatriado, quando se estica, é um longo processo de resgatar as últimas sementes do que nos formou e tentar plantá-las num solo completamente diferente. O que sai disso nos surpreende, para o bem e para o mal.
Escolhi a via saudável. Agora dói menos velar pelo que não der fruto, e sobra energia para comemorar cada folha nova das sementes resilientes que acham jeito de sobreviver numa terra sem sol.
No dia 22 de fevereiro, foi ao ar a entrevista que concedi ao Manual do Usuário. Agradeço ao Rodrigo Ghedin pelo convite e por ceder um espaço para contar mais sobre o processo criativo por trás de Estrangeirismos. Algumas pessoas inclusive podem ter chegado até aqui após me ler por lá, portanto agradeço pela confiança e espero que tenham curtido o que encontraram por aqui!
Costumo enviar uma edição nova, gratuita, a cada duas semanas. Precisei de uma pausa no mês de fevereiro, mas agora devo voltar ao ritmo de antes :)
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega. Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores.
Não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro, e até a próxima!
Que texto instigante, Lidyanne... Sempre me encontro nas suas reflexões já que também sou estrangeira onde moro. Pude ver Ainda Estou Aqui no Brasil e a emoção foi grande e diferente. Nostálgica. Ainda nem sei se vai passar nos cinemas aqui do Uruguai, onde vivo, mas já to recomendando pra todos os meus vínculos.
“Viver no estrangeiro é um pouco trágico, visto que é necessário pegar a nova realidade pelo pescoço e lidar com a finitude de muito do que um dia nos foi familiar ao mesmo tempo.” 💛