[Edição #60]
Bati meia-noite mastigando a décima segunda uva. De 2024 para 2025, apropriei-me da cultura espanhola por recomendação de amigos. Pareceu mais adequado do que atravessar uma ventania maluca até Scheveningen para pular sete ondas no Mar do Norte. Soprei as velas de cinco anos morando na Holanda no início de dezembro do ano passado, e hoje já sei que nunca acostumarei com a insanidade que é usar cachecol na virada do ano. Trabalhei das 9h até as 16h naquela quarta-feira, e a verdade é que quando os anos fizeram a troca de faixa, eu só queria dormir.
Poderia jogar tudo na conta da depressão, essa chata que só me deixa mais chata com o correr dos anos. Mas prefiro atribuir a culpa ao capitalismo e ao fato de ter perdido a conta de quantos dias passei sem ver o sol. Bom humor com céu cinza é para os fortes, e no momento sou uma grande fracote.
A pandemia retardou minha integração nos Países Baixos. Quando consegui meu primeiro emprego, no fim de 2020, tive mais contato com holandeses e todos repetiam o mesmo discurso pronto sobre a honestidade como principal característica dos locais. “Nunca entenda nada como grosseria”, alertavam. “É que somos muito diretos, mas não é por mal”.
Faz todo sentido. Passar tanto tempo exposto à escuridão e viver debaixo de chuva na maior parte do ano é de acabar com a cabeça de qualquer um, inclusive quem nasceu e cresceu aqui. Daí precisam inventar moda e passar os dois últimos dias do ano explodindo mil fogos de artifício para extravasar todo o sentimentalismo que não conseguem manifestar ao longo do ano.
Para o meu azar, sou alérgica a conflitos. Tem algo na mudança de expressão da pessoa diante de mim que me causa desconforto, e só de pensar no mau uso de palavras já adubo pelo menos duas crises de ansiedade. Uma resposta sincerona pode doer, mas dificilmente rebato. Conveniente para eles, porque parte do protocolo que preferem omitir explica essa honestidade hiperbólica como unilateral.
Eles são honestos demais, mas não ouse fazer o mesmo com eles.
Passei 2024 abraçada ao conceito de ‘calada vence’, e vi desfilar diante dos meus olhos doze meses de muitos olhos revirados e sono picotado suficiente para me deixar no pior dos humores. Silêncio custa caro, engolir amontoados de palavras também. Entendi o recado da vida. Ela guardava para mim outros planos, elemento surpresa. Pedia de mim um brado retumbante ao invés do choro sufocado. E sabia de antemão da dificuldade, pois tampouco tenho domínio do tom de voz. Nas poucas ocasiões em que consigo gritar, é quando estou no meio de um show e tenho outras pessoas para fazer coro. Dá segurança imaginar minha voz camuflada no emaranhado de vozes.
São vozes demais vindas de diferentes frentes, e, para piorar, sinto o sufoco da exposição constante a informações e vida alheia no desbloqueio de tela dum celular. 2024 significou saturação. Aquela cena que se repete mais vezes do que gostaríamos, e consiste em se distrair enquanto serve um copo d’água e do nada perceber que transborda.
Fiz a vida acontecer nessa onda de preparar o almoço com a cabeça na lista de atividades pendentes. Quando fica pronto, noto que esqueci de temperar, ou esqueci de baixar o fogo e parte da comida grudou na panela. Não estou só, eu sei. Nos saturamos tanto no cotidiano que fica difícil executar as coisas com a atenção solicitada. Impraticável.
Acrescentei ao balaio de acontecimentos a terrível prática de confabular e criar cenários futuros mentalmente ao invés de fechar a cara e tentar dar jeito no presente. Passei o bastão à ansiedade em 2024, permiti que reinasse minha vida e existi em suspenso.
É uma crise antiga, soube contorná-la em algum momento entre 2022 e 2023. Em 2024, porém, abri os braços como quem se prepara para receber um abraço, e, sem tempo para reagir, só deixei o caminhão passar por cima.
Durante o exercício de observação do ano passado, questionei: e se não quiser fazer barulho? Uma das muitas vozes na minha cabeça respondeu, esganiçada, “talvez seja hora de gritar baixo”. Fazer algum barulho, pois o máximo que a calada pode conseguir é uma úlcera de tanto silenciar o que lhe incomoda.
Cinco anos de Países Baixos proporcionaram toda sorte de ‘dar a real’ à holandesa. Demorou, mas serviu de inspiração para tentar rebater pelo menos com frases curtas. Tento me resolver com esse medo de perder minha delicadeza e o pouco que sobrou de paciência. Uma dose de frieza e a voz firme ao expor meu ponto podem ser suficientes para elevar o tom de voz ao menos um pouquinho.
Para 2025, os planos são esses. Fazer faxinão interno para não carregar comigo tanta angústia, perder o medo de dividir a carga com os outros. Já carrego culpas demais para querer adotar culpas alheias. Os outros que procurem métodos alternativos, terapia, Yoga, jogar tênis, o que preferirem.
E no processo de distribuição, espero me sentir mais leve para enfim mudar o foco e trabalhar a mente para voltar a me concentrar em uma coisa por vez. Deixar os pés se demorarem no presente outra vez, olhar mais nos olhos e deixar de usar as telas como bengala. Agitar meus barulhos internos, gritando baixo.
*Todas as imagens usadas nesta edição foram retiradas da página Galinhas Inseguras.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega. Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores.
Não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último dia de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro, e até a próxima!
"deixar os pés se demorarem no presente" 🍃
"Bom humor com céu cinza é para os fortes, e no momento sou uma grande fracote."
Amiga, me identifiquei demais com o texto. Eu já estou há quase 10 anos aqui e nunca vou me acostumar a essa falta de sol.
Tenho me sentido cada vez mais amarga morando na Holanda e acho que 2024 também foi o meu de gritar que não está tudo bem. Vamos gritar juntas!!!