“Manter-se à parte e ver o mundo apenas em fragmentos, já que outro mundo não existe. Há, sim, momentos, migalhas, configurações instantâneas que, uma vez existentes, logo se decompõem em pedaços”
Viagens, de Olga Tokarczuk
Idealizei um continente ao alcance das mãos. Enquanto amadurecia a ideia de viver num canto dela, a Europa parecia minúscula. Sobretudo do ponto de vista de quem nasceu e cresceu num país tão esticado quanto o Brasil. Abracei a ideia dos voos baratos e a possibilidade de passar fins de semana em Viena, Budapeste, descobrir o interior da Croácia, olhar o Vesúvio no horizonte. Compraria aquele mapa-múndi de raspar, e teria sempre uma moeda em mãos para riscar diferentes destinos a cada retorno.
Era uma mulher redimensionando escalas. Passando da megalópole com 11 milhões de pessoas para um vilarejo de 25.000 habitantes.
Residia ainda na terra que me pariu quando as distâncias se tornaram largas demais para caber na rotina de jovem adulta. Adorava me enganar achando que trabalhando tanto juntaria dinheiro e poderia viajar. Os dias, por sua vez, tinham outros planos: apresentavam-se cada vez mais encolhidos ao lado de um país que, dada sua extensão, exige tempo caso a gente queira se enfiar num ônibus para explorá-lo.
Depois de um trajeto de 10h entre Paraty e São Paulo, compreendi que não era tão simples assim. Mas na Europa seria! A promessa das distâncias mais curtas iludiu aquela jovem que viveria longe de aeroportos e só poderia trabalhar a tempo parcial por conta do mestrado.
Dissipou-se o sonho, aceitei os sinais da vida pedindo para perder o medo do freio. O objetivo da mudança, no fim das contas, era focar nos estudos e iniciar a pavimentação do caminho para uma transição de carreira. Virou exercício para viver em dimensão reduzida. No momento em que assinei o contrato de aluguel do apartamento na rua Albert Thomas, desisti do transporte público. Nas idas e vindas à universidade, oxigenava o cérebro testando novas playlists, observando a evolução das árvores com a passagem das estações e interagindo com gatos que cruzavam às vezes o caminho. Só pegava o T1 ou o T2 quando a neve virava gelo e deixava os meus passos escorregadios.
Trinta minutos para ir, outros trinta para voltar. Minha primeira oportunidade de trabalho ficava a cinco minutos a pé de casa. E só “demorava” um pouco porque o escritório ficava no topo de uma colina. Meses entre salas de aula, mesas da biblioteca, corredores do museu. Aprendi o verlan, linguagem de programação, metodologia ágil. Voltei a correr, aprendi a história — ou melhor, as histórias vividas no antigo Château dos duques Württemberg, agora convertido em museu. Comi pizza e kebab no chão da casa de um colega enquanto ele riscava folhas e mais folhas de papel tentando acomodar conceitos de exatas no meu universo de humanas.
Adorava fazer trocadilhos, chamá-la de Mocheliárd. A verdade, contudo, é que me doeu quando precisei me despedir de Montbéliard. Ainda hoje me dá saudade de subir as torres do Château e buscar uma das fábricas da Peugeot com os olhos.
Fiz uma movimentação para me apropriar daquela cultura e chamá-la de minha. Criei uma história de origem onde era tão parte daquele solo quanto quem nasceu e cresceu nele. No meio desses embalos larguei o desejo de cruzar fronteiras. Nunca comprei o mapa-múndi de raspar, reservei oportunidades para entrar num avião só quando visitaria amigos que, sem dúvidas, valiam as três baldeações de trem e um ônibus até o aeroporto da Basiléia.
Mais tarde, já morando com meu agora marido e com a pandemia enfim dando trégua, fui convidada a desbravar estradas europeias um pouco como eu fazia com os meus pais quando era criança. Nunca fui motorista de longas distâncias. Passageira entre infância e adolescência, vi muita terra vermelha nas bordas das estradas sul mato-grossense rumo ao Goiás ou a Santa Catarina. Vivia no banco traseiro onde, honrando toda uma juventude abundante, mais dormia do que sentia as horas enfiadas num carro.
Adulta, fui promovida ao banco de passageiro. Os cenários, bem distintos daqueles que me acompanharam na juventude, oscilam absurdos em coisa de 150 km rodados. As distâncias encurtadas, lembra? Elas me ensinaram a gostar de degustar a lentidão, o menor, o que ninguém faz questão.



Muitas dessas andanças deram-se em território francês. Depois de Montbéliard, morei em Annecy e o amor me levou para Haia. Mas as raízes francesas do meu marido sempre nos levam de volta à França. Existe uma opção “mais fácil” para fazer o trajeto de Haia até a cidade onde moram os meus sogros, mas gostamos de adaptar o percurso para visitar lugares no meio do caminho. Por vezes paramos em algum canto da Alemanha ou da Bélgica, ou miramos no leste francês.
Num dos parcos feriados do primeiro semestre, por exemplo, corremos para perto. Ainda acho uma loucura que seja tão rápido o caminho de Haia a Ghent, mas é isso. Num susto estamos na Bélgica, diante de um castelo medieval e um catálogo de cervejas feitas em mosteiros diante de nós. Num dia ensolarado de primavera tudo fica com cara de livro da Ana Martins Marques.
Como não gostaria de um lugar onde ando por 10 minutos e dou de cara com um estabelecimento chamado Books and Booze? Saí de lá com uma edição ilustrada de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald.
De lá seguimos ao ponto final, no norte da França. Lille era novidade para mim, mas hoje em dia estar em território francês é um pouco como voltar para casa. Poder entrar num lugar e dizer bonjour é um pouco como tirar um casaco pesado ao chegar num canto aquecido em dias de temperaturas negativas. Sem barreiras impostas pela língua, usufruo do prazer de ser recebida nos restaurantes com uma cesta de pães e poder me debruçar nas estantes das livrarias em busca de lançamentos.
Descobri nas primeiras andanças a Furet du Nord, loja especializada em livros e jogos. Fundada em 1959, hoje conta com 18 unidades espalhadas pelo norte da França. Nas imediações, conheci também o Croâfunding, a primeira livraria dedicada cem por cento à publicações independentes. Dá para selecionar livros, HQs, fanzines, e folheá-los logo ao lado, bebericando um café e comendo bolo de cenoura no charmoso MÜ.
Usamos essas 48 horas para fazer o que mais gostamos: flanar sem rumo pelas ruas, aumentar o nível de colesterol curtindo a gastronomia que tem sua base na manteiga, descobrir cervejas locais, e claro, visitar alguns museus.







O Palácio de Belas Artes de Lille foi eleito um dos mais bonitos da Europa e é preciso pouco para se desprender do tempo nos corredores daquele prédio. Nosso arrebatamento cultural veio, contudo, na forma de dois museus em Roubaix, que fica a 20 km de Lille.
Nossa primeira parada foi numa piscina pública desativada. Toda em estilo Art Déco, assinada pelo arquiteto Albert Baert e construída entre 1927 e 1932, serviu aos locais até metade dos anos oitenta. Fechada por questões de segurança, passou por uma extensa reforma para acomodar o atual museu, inaugurado em 2001. Imaginei pessoas com maiôs típicos dos anos oitenta se refrescando num lugar que parece feito para tudo, menos para nadar.
De lá seguimos para a Villa Cavrois. A imensa mansão projetada à família Cavrois foi concebida pelo arquiteto Robert Mallet-Stevens na década de 1930, e tornou-se um marco da arquitetura modernista francesa. Serviu de base para tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, voltando a pertencer aos Cavrois ao fim da Guerra. Alguns anos mais tarde, ficou a Deus dará após o falecimento da proprietária em 1980.
Só soube dessa história toda ao fim do passeio. No subsolo roda um vídeo que mostra em que estado a casa foi recuperada quando se tornou patrimônio histórico francês. Nele, também há extratos do processo de reforma, que aconteceu entre 2003 e 2015. Trabalho meticuloso e insano para alguém como eu, que sabe muito pouco sobre arquitetura. A estrutura e os móveis respiram outros tempos, mas o que mais me pegou foi o estado de conservação da construção.
Atravessei o caminho de pedras do jardim carregada pela imagem de minúcia, o cuidado de pegar algo quase deteriorado e passar anos transformando-o em algo tão único. Um tanto chateada também, confesso. Aprendo a apreciar o trabalho de arquitetos contrariada porque me parece descabido só ver nomes de homens por trás de obras hoje consideradas icônicas.
Volto desta breve escapada verborrágica, contemplando quanta coisa dá pra acomodar em três dias longe de casa. Dá sede de repetir a a ação para outros destinos, ânsia de mundo bem semelhante àquela que me foi tão familiar quando me instalei na França em 2017.
Logo me vem Olga Tokarczuk em seu Viagens e acalmo os ânimos com as pequenas revoluções a serem vividas em escala reduzida no conforto da morada:
“Existe mundo em demasia. O mundo deveria ser reduzido e não expandido. Deveria caber numa lata pequena fechada, numa espécie de panopticum, um gabinete de curiosidades portátil, e nós só deveríamos poder vê-lo ao sábado à tarde, depois de concluídas as nossas tarefas diárias, lavada a roupa interior, penduradas as camisas engomadas nas costas das cadeiras, encerados os soalhos e feito o bolo de levedura com crumble que arrefece no parapeito da janela.”
O mapa do mundo inteiro já coube no trajeto entre casa e universidade, no silêncio concentrado de um museu vazio, no aroma do pão fresco numa padaria da esquina. Hoje, acho graça da pressa que eu tinha para somar carimbos no passaporte. O mundo, afinal, não precisa ser vasto o tempo todo.
Acolhi o valor de caber no cotidiano, de descobrir o que existe quando a vida acontece em distâncias pequenas. Dei fim ao antigo apetite por fronteiras riscadas a moedas e aceitei o convite de viver das miudezas.
É esse o consolo para a angústia em explorar o desconhecido: cabe tanto em tão pouco. Carrego comigo fragmentos de vivência, pequenas coisas que posso revisitar sempre que quiser — como quem abre, num domingo preguiçoso, seu próprio gabinete de curiosidades, só para reencontrar o conforto silencioso de estar, enfim, em casa.
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Um cheeeiro, e até a próxima!
Fiquei com vontade de ler esse livro!
"Poder entrar num lugar e dizer bonjour é um pouco como tirar um casaco pesado ao chegar num canto aquecido em dias de temperaturas negativas."
Me descreveu morando na Inglaterra depois de anos na Alemanha (onde não falava a língua). Que delícia de alívio descrito.... lindo texto, obrigada!