[Edição #48]
Se me demandam a faixa etária, respondo, “agora preciso de rotina mesmo estando de férias”. Ou poderia integrar o grupo de pessoas cujas amigas começaram a produzir mini-humanos, e muito se fala sobre estabelecer a rotina do bebê. A repetição de ações ajuda a normalizar comportamentos e familiarizar um projeto de ser humano ao conceito de viver em sociedade. Pelo visto nos encaminhamos rumo a algo similar na vida adulta, visto que, após muita desordem, um pouco de organização parece fazer um bem gigantesco.
Nossos dias começavam agarrando a preguiça de sair da cama após uma noite amassada. Parecia até que as jardineiras dos passeios de Jericoacoara vieram conosco e nos atropelaram de madrugada. Entre o calor improvável do inverno nordestino e o ar condicionado tinindo nos quartos de hoteis e pousadas, nosso sono bagunçou, fez as malas de volta e decidiu esperar por nós na Holanda.
Rendia olhos secos, dores de cabeça, e busca pelo único remédio possível naquelas condições: tapioca de queijo coalho feita na hora, quentinha. Com o queijo desmanchando na boca. Pequenos pratos transbordando pedaços de manga e algumas xícaras de café fechavam o combo.
De barriga cheia, dava-se o processo de se embatumar. Tirávamos a roupa para cobrir o corpo com protetor solar. Desperdiçar férias devido a insolação estava fora de cogitação. Era o momento indicado para iniciar o processo de aclimatação, desligando o ar, e tentando vestir de volta as roupas de banho no corpo besuntado, em pleno estado de condensação. Riscava a lista mental da sacola, certificando de ter sempre algum dinheiro em espécie, água e boné conosco.
Quando passamos a fronteira entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, me arrastou a atenção a profundida dos buracos na estrada. Verdadeiras crateras. Não era novidade, cresci atravessando as estradas do Mato Grosso do Sul e do Goiás e elas também tinham trechos perfurados. Mas esses pareciam feitos por meteoros. Talvez sejam os buracos rastros de foguetes. Os carros sobrevivem às estradas esburacadas graças ao “Deus fiel” dos adesivos colados no capô.
Passamos os últimos dias da viagem na capital do Estado, Natal. Corroídos pelos deslocamentos, horas de estrada e, por que não, pela chuva traiçoeira que às vezes escondia alguns desses buracos. Abrimos o mapa, decididos a percorrer distâncias menores. Optamos por Genipabu.
O movimento para vender passeios na região soa agressivo. Tomamos alguns sustos em rotatórias, quando pessoas faltavam se jogar na frente do carro para fazer anúncios ou entregar panfletos. Decidimos pelo estacionamento do véinho, marcado no muro com essa grafia.
Adentrando a cidade, nos interrogamos sobre a discrepância das placas. É Genipabu, ou Jenipabu? A pressa em lagartear ao sol dissipou o questionamento, que voltaria a invadir os pensamentos mais tarde, já no hotel. Pesquisei na internet e soube que o nome deriva do termo indígena “jenipapo”, uma frutinha de sabor ácido que um dia foi abundante na região. O registro do município foi feito com “G”, e assim permaneceu. O Brasil tem dessas de apagar os traços indígenas até mesmo na escrita.
Evitamos os buggys por quase três semanas, porém mudados de ideia quando espiamos as Dunas ao longo da estrada. Só dava para visitar com os guias autorizados. Ao lado do volante do nosso escolhido, um adesivo anunciava: "Deus é jóia, o resto é bijuteria".
Mergulhamos no silêncio da natureza selvagem e das dunas lisas, sinuosas. Desbotadas, quase da minha falta de cor. Tal como eu, devem ter pouca melanina. No meio do nada, uma lagoa fresca forma-se com as águas das chuvas, presença marcante no inverno potiguar. Outra, mais distante, também se constitui com restos pluviais. Tem até uma pequena ilha.
Temos a sensação de sermos os únicos nesta paisagem desértica. Cercados apenas de areia. Avistamos uma tenda com três pessoas e descobrimos a existência de toda uma produção fotográfica. Alguém se encarrega de tirar as fotos, o outro as descarrega no laptop e faz os trâmites para transferir os arquivos para o celular dos clientes. A terceira pessoa cuida do cooler cheio de garrafinhas d’água, refrigerante, e cerveja. Sede também é oportunidade.
No Nordeste, vê-se uma plaquinha de coração em qualquer oportunidade. Ou um parzinho de asas com frases genéricas. Tudo para garantir turistas felizes, prontos a estourarem a capacidade dos seus celulares com bons cliques.
De volta à praia, reabastecemos com água de coco fresca, enquanto reparava no quão amplo é o voo do Carcará. Parece desproporcionalmente grande ao abrir as asas. Por ocasiões lembra um guarda-sol sobrevoando nossas cabeças. Olhava-os com admiração, meio carente de bichos, visto que os cenários da minha vida são agora povoados sobretudo por gaivotas barulhentas e alguns coelhos selvagens. A cada revoada ouvia ao fundo a voz de Maria Bethânia na apresentação do Teatro Opção.
Meu parceiro, francês, achou graça no nome Jenipabu. A pronúncia rápida soa até como “Je n’ai pas bu” (eu não bebi), em francês. Apreciamos a calmaria. Seria Jenipabu a paz do Rio Grande do Norte? Com exceção dum casal um pouco distante com uma terrível caixa de som que por vezes perfurava a paisagem sonora, só ouvíamos o barulho do mar. Pouca gente, poucos ambulantes, e esse misto de saudade com a certeza de que deve ser bom demais ter acesso à água de coco todos os dias.
As plantações de vira-latas, cachorros e gatos inclusos, são frutíferas. Apareciam do nada, saídos de algum canto da praia, ou das pousadas. Tentavam abocanhar porções do que comíamos, e às vezes só procuravam o calor dos nossos pés para um breve cochilo.
Peguei o caderno com leve remorso, manifestou-se um ranço desses rabiscos. Queria jogá-los no mar e torcer que voltassem rejuvenescidos. Ou pelo menos mais frescos. O que escrevo só terá valor com mais aprovação externa? Um dia conquistarei um público? Ou vou enfim viver uma revolução interna que fará de mim fada das letras?
Divagando, vagando, navegando nos tons de angústia que comigo flutuam até nos cenários mais idílicos. No mar me banhei, pedi alguma forma de purificação ao invés de destruir a tinta esparramada no papel. No Deus fiel dos adesivos deles tenho só descrença.
Acredito, contudo, nessa alma imensa que agita o mar. Que leve consigo essas angústias tão abundantes de teimosia.
Para além dos Estrangeirismos
Amar ou ser útil?, do podcast Gostosas também choram.
“Não fossem as sílabas de sábado”, com Cida Saldanha e Mariana Salomão Carrara, do podcast Clube do Livro Eldorado
O efeito do álcool no nosso corpo e na pele, do podcast Bonita de Pele.
Eu amo uma lista, da Tatiana Guedes. Até comentaria a lista da NYT, mas a Tati já o fez com muita graça e a Carolina Sandler também.
Pra repensar: marmita de gringo, da Lola Ciniro.
Me senti muito chique & honrada por receber a visita da Aline Valek na edição anterior de Estrangeirismos. Minha admiração pelo trabalho dela não é de hoje, mas ter a gentileza dela em ler, comentar e compartilhar minha visão sobre um dos livros dela é grandioso. Se você chegou aqui por intermédio da Aline, espero que goste! Minha casa no Substack é meio bagunçada, talvez falte algum requinte. Mas é aconchegante. Enquanto imigrante, muitos dos textos atravessam este tema, mas você também encontra escritos sobre livros, cinema e música :)
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, sinta-se em casa! Agradeço pelo suporte e por me receber na sua caixa de entrada a cada duas semanas. Espero que encontre conforto nesses escritos. Te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último domingo de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro e até a próxima!
Que lindas fotos, Lidy!!!
Graças à “o pato” de Vinícius de Morais, conheci o jenipapo. Mas já vi versões da letra com as duas grafias…