[Edição #64]
Geluid
(som)
Observo a adulta acanhada no espelho em busca de respostas. A criança desbocada e sonhadora que a antecedeu era um castelo de areia. O vento soprou forte por muitos domingos, dissipando as parcas ambições daquela menina. Espalhada pelos cantos, pergunto se valeria buscar e recolher as sobras. Jurava que seria a Sandy quando crescesse, fiz aulas de canto e gravei um disco aos oito anos. O microfone deu lugar a um aparelho de som e uma pilha de CDs. Depois dele, veio o discman, o player compacto de mp3, e o moderno iPod.
Esconder-se no ruído é uma estratégia antiga. Se as palavras me faltavam, apelava aos fones de ouvido. Estar na companhia de quem elabora sensações compondo e cantando é, muitas vezes, mais eficaz que um exercício de respiração. Silencia as vozes em ondas na minha cabeça, desacelera os batimentos cardíacos.
Sai muita coisa dessa boca e até pra mais descrente em astrologia é uma delícia culpar a minha lua em gêmeos. Mas também não quer dizer que essa barulheira toda faça sentido, que tenha propósito, e tampouco que traduza o que realmente quero dizer. Não passa duma facilidade para entreter desconhecidos. Medo do incômodo que o silêncio em grupo possa causar.
I’ve never been an extrovert, but I’m still breathing. Se não se perderam na mudança dos meus pais do Mato Grosso do Sul para o Goiás, é possível que a discografia do Placebo ainda esteja numa caixa na casa deles. Trilha sonora da minha ponte dos quatorze aos quinze anos, revezava os álbums no discman e me sentia menos solitária ouvindo minha banda de caras esquisitos. Tinha até um amigo mais velho, que já estava no Ensino Médio, e partilhava do gosto estranho para música. Nem imaginava que já começaria a formar meu bando naquele período.
Dia desses meu marido disse que eu precisava tratar as minhas paixões com mais seriedade. Que não tinha nada de bobo em querer voltar a fotografar com câmera analógica, muito menos em me dedicar à escrita. Reforçou, me dizendo que devo valorizar a minha trajetória. Será que esse meu deboche constante quando converso sobre as coisas que me fazem bem é chiste*? Rir de nervoso é uma prática tão comum quanto a atividade física no meu cotidiano.
Há cinco anos me desloco pela cidade de bicicleta e sem capacete. Cinco anos dizendo “isso aqui é plano demais para oferecer riscos e não quero passar como turista”. Cinco anos ignorando o risco de deixar a roda prender nos trilhos do tram. Flertando com a morte ou somente desgarrada da vida? Minha avó materna descansou no último 26 de março e estranho acordar num mundo onde ela não está. É a primeira vez que perco alguém tão próximo. Tento, entre solavancos, elaborar o luto.
As cartelas de remédio se espalhando pela casa. Tenho 34 anos e tomo, todos os dias, três medicações controladas. Acrescento outros quatro suplementos. Minhas muletas por uma existência mais leve se multiplicaram. No desgaste de envelhecer uso essas ferramentas para reclamar de volta meu desapego dos tempos em que subia em árvores, corria pelas ruas de terra vermelha, e aprendia a andar de bicicleta sem rodinhas.
Precisei ir até a farmácia buscar um dos remédios. Os termômetros bateram 21 graus e preferi deixar a bicicleta na garagem e caminhar até lá. No meio do caminho respirei fundo e lamentei a escolha, demoraria pelo menos uma hora até voltar para casa. Perdi a calma, vejo tudo com a ansiedade de quem quer resolver os problemas para ontem.
Já disse a mim mesma que deveria prestar mais atenção às flores despontando na grama anunciando a primavera, mas até hoje só me dou conta quando tropeço nelas.
Aurora (Joana Santos) trabalha num armazém fazendo triagem de pedidos. É pelo ponto de vista dela que percorremos a narrativa entalada na garganta de On Falling, dirigido pela portuguesa Laura Carreira. Aurora mora em Edimburgo, na Escócia, numa rotina que consiste em escanear produtos, improvisar uma janta no local que divide com outros (semelhantes) estrangeiros, buscar alguma interação social nos almoços na empresa ou na cozinha compartilhada de casa.
Eenzaamheid
(Solidão)
Nossa heroína prefere passar fome a ficar sem celular. Depois de um pequeno tombo que fracassa a tela do aparelho, Aurora paga um valor extra pelo reparo mais rápido. Percorrer feeds é mais confortável do que ligar para algum familiar e dizer a real: larguei meu país de origem em busca de oportunidades financeiras melhores, mas continuo na merda.
Em tempos onde pouco se discutia sobre sustentabilidade, as padarias e a cantina da escola serviam refrigerante de duas formas: na garrafa de vidro, para beber no bico ou com canudo; ou no saquinho plástico. Já nem tomo mais refrigerante, mas por vezes penso no saquinho plástico cheio, na alegria de sorver o conteúdo. Vejo minha carreira minguar como o saco enxugado, vazio, segurando o canudo.
A conversa com o meu marido me inspirou a revirar arquivos antigos e checar há quanto tempo publico nessa terra sem lei que é a Internet. Com alguma surpresa vi o resultado das contas — dezoito anos desde o primeiro post público num blog. Atingiu a maturidade em 2025, acredita? Aprendi a ser um livro aberto para desconhecidos muito jovem.
Para mim é tão natural quanto a luz do dia sentar, escrever sobre algo muito pessoal e jogar no mundo. Antes confiava muito no fato de ninguém me ler, hoje em dia tenho fases de divulgar alguns destes rabiscos. Fiquei meio sem vergonha. Não sei bem o que mudou, deve ser a idade. Envelhecer ajuda a desapegar de julgamentos. Com frequência até me esqueço sobre o que escrevi umas duas edições atrás e faço o quê? Repito assuntos, uso até os mesmos exemplos e frases. Quem me lê com frequência é muito parceiro por não me abandonar apesar de tantas repetições.
Por vezes até me pergunto se não tem psicanalista me usando de case de estudo. Só fala de ser imigrante, de ser adulta e querer morrer porque tá cheia de cabelo branco na cabeça e ainda não tem uma carreira estável.
Sou as entrelinhas da voz sem fôlego de Camille que interrompe as frases e repete tout dit tout dit tout dit num looping que dá nervoso e, ainda assim não consigo apertar o stop ou trocar de música.
Aanraken
(Toque)
Viver longe do meu país de origem me transformou, no longo prazo, em caramujo retraído na concha. Perdi a malemolência para ser um livro aberto, tudo soa um pouco ameaçador. Aanraken. Fico em situação de Aurora. Evasiva nas trocas com quem ficou lá no Brasil, sensível a interações com a vendedora de uma loja ou com o desconhecido que tenta me acudir de um transe existencial.
Neste fim de semana, li Uma mulher sem ambição, de Sabina Anzuategui. Destaquei, entre vários trechos: “Desligo e me desmonto teatralmente sobre a cadeira, esmagada pelo esforço de cordialidade. Eu só queria um pouquinho mais de dinheiro. Só um trabalho simples e inofensivo. Uma tarefa curta, um bico, um quebra-galho. Não uma série que vai exigir dedicação de segunda a segunda, das oito da manhã à meia-noite, que vai invadir meus pensamentos no sono, no banho, no vaso sanitário. Que vai me estressar e me induzir a gastar meu pagamento em restaurantes e bebida ou qualquer outra satisfação rápida”.
Olhos cansados
semi cerrados
revirados
tontos
fora de órbita
de tanta rejeição.
Junto com os cabelos brancos veio também a descarga de energia. Ou melhor, o descarregar de energia. A bateria do meu corpo viciou, despenca para 30% e nada consegue fazê-la carregar para além dos 80%. A minha voz fraquejou, tanta exposição passou a doer. Vivo naquele paradoxo do “mas ninguém lê mesmo” contra o “e se alguém ler e usar isso contra mim?”.
Regulando ruídos. Minha lógica de sobrevivência consolidou-se no uso de sintetizadores e outras parafernálias técnicas que ainda não domino plenamente. Reduzir a frequência, escolher quando aumentar ou diminuir o som dos meus barulhos internos.
*Na Psicanálise, os chistes podem ser trocadilhos, piadas, brincadeiras de duplo sentido. Na relação com o inconsciente, é uma espécie de alívio cômico: contar o acontecimento em tom de piada ajuda a desabafar sobre coisas que não sairíam de nós com a mesma facilidade se contados com seriedade.
*Os títulos são palavras em holandês, a tradução para o português está logo abaixo, entre parênteses, em itálico.
Um café, por favor?
Arreguei, dei pra trás, visitei o vale da desistência* e fiquei por lá. Tenho planos de voltar a enviar uma nova edição a cada duas semanas, mas ainda é cedo para dizer qualquer coisa sobre as minhas capacidades no momento. Medicada sou ótima, entretanto nem sempre. A partir de agora todas as edições de Estrangeirismos serão gratuitas.
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*Sou muito fã da Aline Valek e faço questão de espalhar a palavra dela, mas essa referência é só para quem a apoia financeiramente e leu a edição surpresa mais recente publicada por ela. Se você não conhece Aline, deveria! Leia Uma Palavra e aproveita para apoiar a escritora maravilhosa que ela é :)
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega. Assinou a newsletter há pouco tempo? Te convido a conferir as publicações anteriores.
Não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro, e até a próxima!
ouvi e favoritei a música, anotei o nome do livro, admirei as fotos, me identifiquei com partes do relato. amo acompanhar suas descobertas e a sua escrita <3
que lindo...