[Edição #63]
Either way, we're not alone
I'll find a new place to be from
A haunted house with a picket fence
To float around and ghost my friends
Phoebe Bridgers - I know the end
São Paulo era barulho. Correnteza de buzinas, rodas triturando o asfalto, porta do metrô regurgitando gente. Eu buscava cor navegando no seu cinza. Descobria cores no subterrâneo, tragada pelo roxo-paraíso, e tão logo enjoada do verde-consolação. Morava a duas quadras da Avenida que começa com nome de doce. Em sua extensão íngreme me cuspia na Avenida Paulista, onde vestia meu chapéu de bobo de corte e entretinha meus colegas entre o terceiro e quinto andar do prédio da Gazeta.
São Paulo era mágica. Sonho adolescente. Às sextas à tarde, passava na banca em frente ao Estadão e comprava a Folha de São Paulo. Sentava na padaria, pedia café e um pão de queijo, e folheava o guia alucinando com a quantidade de eventos. Como disfarçar o estado de euforia depois de um clube do livro com a presença de Mia Couto de graça? E após pagar 25 reais para ver show do Camera Obscura?
São Paulo era sonho. Estudar numa das melhores universidades de jornalismo do país. Ter opções, no plural, de livrarias, e a Biblioteca Mário de Andrade a menos de 1 km de casa. Paul McCartney jamais faria um show no Mato Grosso do Sul, mas em São Paulo bastava uma viagem ao Morumbi para ouvi-lo cantar. Acabou a espera de meses para ver um filme no cinema. Com as promoções do catraca livre, perdi as contas de quantas vezes fui ao Reserva Cultural de graça ou pagando míseros dois reais.
São Paulo era cara-crachá. Lá todo mundo dizia a profissão antes mesmo do nome. A 20 minutos a pé da minha casa, obtive o meu primeiro crachá. Comecei a me apresentar como jornalista e assessora de imprensa. Na Galeria Olido atendia telefonemas, respondia emails, escrevia para o Guia Mensal de eventos da Secretaria de Cultura do Município. Ficava abestalhada porque alguém me pagava um salário para me ensinar a ser profissional.
São Paulo significou também desilusão. Danço eu, dança você, na dança da solidão. Cada um por si, pegar leve nas demonstrações de carinho, zero paciência para quem tá começando. Descobri que era meio jeca. Desconhecia política, não cresci lendo Sérgio Buarque de Holanda, tampouco ouvindo Gilberto Gil em casa. Pensava ser vantagem falar inglês, nem sonhava que boa parte dos meus colegas já aprendia uma quarta língua.
Algo nos primeiros três anos de São Paulo me dizia que nunca estaria à altura daquelas pessoas tão intelectuais. Tentava “me cultivar”, frustrada, com um gosto amargo na boca por ter consciência que todo esforço era em vão. Mas eu era teimosia, persistência.
Demos as mãos, eu e São Paulo. Correu tempo até me enxergar na cidade. Conversamos sobre nossas qualidades e, sobretudo, nossa suntuosa bagagem de imperfeições. Topei o desafio de transformar aquele território em algo um pouco meu também.
Deixei meu léxico de pertencimento se esticar.
Quando me mudei para Montbéliard em 2017, passei os primeiros meses tendo variações do mesmo sonho. Nele, costumava descer de um ônibus ou de um trem e deliberadamente deixar minha bolsa para trás. Quando o veículo partia, batia o desespero de ter perdido minha identidade.
Entre barulhos, sonhos e desilusões, de tanto me espelhar na cidade, entendi um bocado sobre quem eu era. Querer me moldar para caber no modelo de apreciação do lugar onde vivia era um disparate. São Paulo me deu os ingredientes para entender minha essência; me instigou a mergulhar nas minhas singularidades.
No fim das contas, nunca pertenci a São Paulo. Hoje entendo: nem era necessário. Amadureci e aprendi muito enquanto tentava me enturmar, e aprendi a descartar o que, para mim, não fazia sentido. Mesmo que parecesse essencial para participar da dinâmica do lugar.
A cidade, com suas contradições e possibilidades, me ensinou que o pertencimento não está nas ruas que percorremos, mas no que permanece em nós quando partimos.
São Paulo foi — e ainda é — serendipidade. Miríade de coincidências malucas, encontros inesperados e o impossível se tornando palpável. A cada retorno, não desembarco. Começo uma desintegração, me esparramo. Percebo que não sou mais a mesma. Observo a cidade que há tanto não abriga meus pés e noto: ela também mudou. Talvez por isso nunca nos despedimos de verdade – apenas nos reencontramos, reinventadas.
Vamos continuar esta conversa?
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Não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro, e até a próxima!
E pensar que foi saindo de São Paulo que eu coloquei em prática a escrita sobre aquilo que mais sinto falta dela: os graffitis, os murais, as pixações! E quando fui para outra cidade só senti paz quando reconheci uma empena de um artista brasileiro. E tantas delas no seu texto. É o que eu tenho de mais familiar na minha cidade, numa experiência tão diferente da sua. Obrigada pelo texto
“Deixei meu léxico de pertencimento se esticar.” Salvei essa no meu bloco de notas ❤️