[Edição #46]
Desde que me estabeleci de vez no estrangeiro, visitar o Brasil é como entrar num ringue de luta. De um lado, tenho a expectativa do que teria sido a vida caso tivesse permanecido. Tudo devidamente romantizado, cheio de flores, num cenário onde ostento a imagem da mulher plena, realizada, com uma carreira estável. Do outro, vejo o reflexo de alguém destruída, estagnada profissionalmente, e frustrada por não ter se lançado em projetos mais ambiciosos. Insegura, com medo de um futuro incerto no país que foi meu primeiro lugar no mundo, e supostamente deveria me acolher.
Imigrante adora fantasiar possibilidades. Alguns superam rápido, outros, como eu, passam anos às voltas com essas questões. Deve ser pior pra quem é de humanas, sorte do pessoal de exatas que é mais faca na caveira e resolve tudo de forma mais prática. Mergulho de cabeça a cada passeio, embora saiba que essa natação toda é sem propósito e só ajudará a crescer mais cabelos brancos.
Neste MMA emocional porreta passo dias, semanas, engolindo o choro. Seja em locais até então desconhecidos, ou visitando esquinas por onde arrastei os pés tantas vezes. Estar no local das minhas origens é rebuliço certeiro. Me revira de modo muito particular. Tateio essa incompreensão silenciosa, sentindo muito, mas sem conseguir elaborar. Nem dá tempo de processar muita coisa. Dias de Brasil são dias de turbulência, onde as coisas se empilham e deixam quase nada de espaço para respiros.
Pega nas entranhas. A dificuldade em produzir sentido em cima de tantas sensações enlouquece o intestino. É buscar relaxamento nas férias e encontrar privação de sono. Fica aquele chove, não molha, onde troco de posição na cama ao longo de uma hora inteira e, cansada da luta, pego o kindle na cabeceira e tento distrair o cérebro lendo ficções escritas pelos outros.
Tomo notas aqui e acolá, coleciono frases e imagens de tudo que me toca pelo caminho. Coloco esse amontoado de coisas na sacola, talvez me ajude a juntar as peças e liberar as emoções encravadas mais tarde.
Deveria sentir raiva das ruas imundas. De não poder tomar água da torneira. Das compras que me são entregues numa sacolinha plástica verde. E até do fato de limpar a bunda e jogar o papel no lixo ao lado do vaso. Mas tudo isso tem um gosto de familiaridade estranho. Cresci no meio dessa desordem, dessa sujeira, e de toda essa poluição sonora. O desvio do jeito certinho de ser europeu faz parte de quem sou.
É que ninguém conta histórias como você, Brasil. Fácil demais me prender na ilusão do quão melhor seria a vida caso permanecido dentro deste contexto.
Basta uma caminhada breve da Rua Genebra até a Nestor Pestana para pescar diálogos e inventar narrativas a pelo menos três transeuntes. Observar a arte no muro de um dos prédios, achar graça nos anúncios de venda de jornal “para as necessidades dos cachorros”, nos adesivos colados nos postes cheios de frases de efeito. E as livrarias coloridas que me tentam feito o diabo.
Fico é toda bobinha com esses retornos, tanto que me vi com saudade até mesmo das reclamações comuns de quem vive na selva caótica. Quando a Anna disse que a Berrini era o umbral de São Paulo e todos consentiram, bateu. Senti falta desse acolhimento coletivo que abraça apertado até no meio da desgraça.
Alguma coisa acontece no fundo da alma do meu coração, é fato. Toda a agonia emocional se dissipa quando entro no carro em direção ao aeroporto de Guarulhos. Por dentro tudo amolece e meu rosto vira um verdadeiro escarcéu. Choro todos os sentimentos contidos no percurso para entrar no avião uns 20% mais leve.
Voltar para casa sempre doeu. Assim mesmo, no pretérito perfeito. Chegava do Brasil arrasada, rasgada de tristeza por saber que todo afeto facilmente acumulado na terrinha era doce ilusão em território francês e, mais tarde, holandês. Por sorte com o tempo amadurecemos, muitas feridas cicatrizam, e os caminhos também acabam se expandindo.
Neste 9 de junho fraquejei. Deixei a frustração inflamar a garganta ao entrar no avião. Contudo, celebrei na mesma medida porque essa dor veio sozinha, independente, deu cabo de tudo que tinha de mau para sentir e acontecer. No meio do ringue, ao menos desta vez, lancei bandeira branca e coloquei os meus dois lados para acertarem as contas e ficarem em paz.
O coração voltou mais disposto, aberto a possibilidades. Dei alguma abertura para esse G rasgado e pouco sonoro. Se brincar logo menos ficarei tão feliz quanto os adolescentes que acabam de se formar e tem as mochilas penduradas junto à bandeira hasteada na frente de casa.
Penso agora no quanto cada abraço apertado dos reencontros me trouxe a energia que precisava para continuar e me enxergar mais forte do lado de cá. Tatuei cada rosto e as muitas frases de apoio e carinho num canto bem bonito da memória - e agora olho para ele e sorrio satisfeita. Saí de São Paulo aliviada, tranquila em saber que sempre terá colo quando quiser passar por lá.
Para além dos Estrangeirismos
A mente é sempre a mesma - No meio das férias, enquanto fazíamos hora no aeroporto aguardando o embarque, desabafei no Instagram. Ato meio insuportável por parte de alguém (tão) cronicamente online. Relatei um pouco do desconforto que andava sentindo na tentativa de fazer este espaço crescer. Acreditar na minha escrita e parar de me julgar tanto antes de clicar no botão “enviar” já foi um passo gigantesco. Mas divulgar ainda me desanima muito. Meu alcance é baixo, e dedicar um tempo panfletando pra minha bolha é exaustivo. Bateu aquela dúvida clássica se compensa continuar ou não, e esse texto da Surina caiu na caixa de entrada em boa hora. Junto o texto dela ao retorno de amigos queridos e insisto mais um pouco…
Todo mundo quer fazer um livro importante - Essa provocação da Fabiane é tudo pra mim. Queremos mais livros bagaceira, com personagens odiosas, provocativas. Estou numa fase ótima de leituras, mas já tive momentos em que questionei se os livros andavam todos meio iguais, seguindo fórmulas prontas. Tem faltado um pouco da ousadia de desagradar sem medo.
Exercícios para sair do corpo - O podcast Bobagens Imperdíveis volta em breve e este interlúdio está bom demais.
Mais estranho que a ficção - Tudo em torno do projeto de lei 1904/2024 me embrulha o estômago. Ainda não consegui processar as notícias nos últimos dias, tampouco escrever sobre o assunto (mesmo no meu diário, longe dos olhares alheios). Paula Maria aborda, nesta edição, o pânico de não ter poder de escolha sobre nossos corpos. Que mulher anda sempre desamparada a gente já sabe, não é novidade para ninguém. Mas toda vez que a pauta do ab*rto aparece, bate a angústia de falarmos tão pouco sobre o assunto e ainda carecermos tanto de esclarecimentos sobre o tema. Recomendo a leitura do texto da Paula e dos links que ela indica no final.
Vamos continuar esta conversa?
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Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último domingo de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro e até a próxima!
eita como me identifiquei... moro na Itália há 3 anos e fui visitar a terrinha pela primeira vez esse ano... meu deus... tem alguns meses isso e até agora não me recuperei. Dá cá um abraço apertado, vai...
Na maioria dos textos que eu leio, sempre tem alguma coisa que eu não me identifico. Esse teu parece que descreve exatamente como me sinto, até o choro na hora de ir embora. Alguma coisa acontece no fundo da alma do meu coração também