[Edição #66]
Meninos engrossam a voz na adolescência enquanto meninas suavizam as cordas vocais. É para suportar o encontro diário de placas tectônicas acontecendo no corpo. As estrias brancas no interior das minhas coxas confirmam, a pele quase rasgou deixando claro que dali adiante precisaria existir. Minhas sobrancelhas engrossaram e os cabelos decidiram encaracolar e crescer desordenados para cima. Escondia parte do tronco com camisetas de banda largas demais, mas não dava para deambular trajando capuz.
Nessa de diminuir o tom de voz virei máquina de ruídos. Comunicava o que até então parecia inominável por intermédio de músicas e trechos de livros. Assim mostrava meus fragmentos. Espalhava citações nos cadernos escolares, na lateral branca do Converse preto. I’m a freak of nature. Na legenda das fotos publicadas no fotolog, nos textos escritos em miguxês no Livejournal. Increase, delete, escape, defeat, it’s all that matters to you. Rabiscava o braço usando caneta esferográfica quando nem sonhava em me cobrir de tatuagens.
Me perguntava se aquilo não era obra dos meus caprichos. Definir-me pelas composições daquelas bandas era buscar uma personalidade. Queria ser a menina esquisita que tem sempre um livro consigo e sabe nomear mais de cinquenta bandas de rock. Desejava pertencer e ser acolhida com os traços que tanto insistiram em me dizer serem feios. Não queria fazer escova para deixar os cabelos lisos, passar cera quente nas sobrancelhas, tirar cutículas e pintar as unhas com esmalte. Sonhava em ouvir Nirvana e Silverchair nos fones de ouvido, viver de rabo de cavalo, e receber ser amada do mesmo jeito.
Segui povoando os ouvidos e as folhas de papel, as armas parcas que tinha em mãos para atravessar uma existência tão trivial. Descobri vias de escape nas páginas dos livros que se acumulavam nos cantos do quarto. Entre uma frase alheia e outra, inseria minhas criações. Fazia dos cadernos diários, depósito de tudo me deixava em ebulição. Por intermédio das palavras elaborava, armava-me de algum entendimento.
O papel servia de escudo. Tinha vergonha de admitir a vontade de ser vista por inteiro, com defeitos e qualidades, e de pedir ajuda.
Essa brincadeira de verbalizar só entre quatro paredes custa caro, e uma hora meu corpo bateu na porta cobrando explicações. Cheguei na sala pouco iluminada da Av. Angélica chorando a doença sem diagnóstico da minha irmã, um pé na bunda e o choque de realidade de voltar para minha terra após uma experiência de quatro meses no interior da França. Solucei banalidades sinalizando o quanto era fraca, como era possível tanto drama por coisas que afetam qualquer indivíduo. Tá todo mundo tentando, insistia. Por que só eu faço corpo mole?
Naqueles anos cresceu minha revolta. Odiava meu corpo, o cabelo, a personalidade tacanha. A dificuldade em conversar sobre a tristeza que tanto me oprimia era vergonhosa. Sentia o desconforto das metamorfoses que ela me provocava e, impossibilitada de falar sobre a minha dor, chiava. Afastei pessoas porque só sabia reclamar.
Desde então perdi a conta de quantos chá-revelação a psicanalista promoveu. Agora não bastava tirar as casquinhas das feridas. Passava tempo demais olhando para cada uma. Virei um bicho ensimesmado, até um tanto egoísta. A jornada de autoconhecimento demandava muito de mim, mas era um percurso divertido.
Entre lamentos afirmei minha força para um punhado de coisas, perdi o medo de pegar os desafios pelo pescoço. Coloquei o Mato Grosso do Sul no bolso para encontrar meus rumos em São Paulo, afirmei minha capacidade em ser uma profissional séria e respeitada. Aprendi francês na força do ódio, fui cara de pau até construir um bom portfólio e provar a mim mesma que era força bruta. Era Lidy contra Lidy em tempo integral, em batalhas tão ferrenhas que uma hora quebrei. Esqueci que era preciso mão leve para lapidar essa pedra grossa e pesada na qual me transformei.
Carregava comigo um monstro. Vivia agarrado nas minhas entranhas. Criamos uma úlcera de tanto sairmos para tomar um café. Deixei de aproveitar as delícias do autoconhecimento porque um compilado de inseguranças tirou meu sono. E também levou consigo a minha vontade de viver. Só chamei o monstro pelo nome pela primeira vez em 2015 e, um ano mais tarde, assumi a derrota quando ele me empurrou ao psiquiatra.
Fiz tratamento, tive alta, anos mais tarde tolerei a recaída. Entrei na sala do psiquiatra em fevereiro deste ano desnorteada pelo calor, bagunçada pelo jetlag, e exausta. Nada pessoal, ele é ótimo, mas adoraria não ter que vê-lo mais. Ele entendeu a angústia e trocou a medicação por outra que é uma piada pronta. Perguntei se ela faria faxina nessas trevas que não desgrudam do meu cérebro, ele soltou o riso de quem já ouviu essa piada vezes demais.
Hoje, com dor no coração, oscilo entre duas agonias. A primeira: quando acordo bem, leve, encantada até com a sombra do sol se desmanchando na parede da sala, agarro a felicidade aflita. Tento mapear sensações, tomar nota, descobrir se consigo prolongá-las, repeti-las caso me escapem. Defino potenciais fórmulas de fazer durar. Agonizo por achar que esse bem-estar tem prazo de validade.
A segunda: até quando? Esse monstro agarrado às minhas entranhas, tem cura definitiva? Posso operar para expulsá-lo do meu corpo ou já virou parte integrante, que não pode ser vendido separadamente?
Às vezes seria mais fácil se pudessem me mandar para o recall.
I try (I try), to let (To let)
Whatever has to pass through me pass through
But this is staying a while, I know
It might not let me go
Lorde - What was that?
Sem anteparos pego o olhar do outro emprestado e observo com cautela. Acanhada, claro, ainda me apavora encarar esse tanto de pele. Paro na frente do espelho ouvindo What Was That?, música escolhida pela cantora Lorde para divulgar seu novo álbum. A letra parece falar sobre os desdobramentos de uma ruptura amorosa. Ouço, por minha vez, a quebra das barreiras e o início de um diálogo franco comigo mesma. É preciso confrontar o que pode levar tempo para ser tratado.
Existe uma expressão em holandês usada para definir caminhos alternativos criados por pessoas cortando caminhos em trilhas. Olifantenpaadjes, em tradução literal, seria “caminho de patas de elefantes”, em referência aos elefantes, habituados a abrir trilhas próprias que acabam marcando o solo e virando uma estrada visível.
Hoje completo mais uma volta em torno do sol fazendo meus olifantenpaadjes. Quando a rota tradicional não convém, crio desvios, bifurco. Acho meu jeito de seguir caminhando. Em vez de distrair o monstro, convidei meu marido e alguns amigos a conhecerem a criatura. Até tomamos chá e comemos bolo juntos. Todo mundo aprendeu a conviver com os meus demônios, e isso fez uma diferença colossal.
(Um olifantenpaadje que registrei esses tempos)
Dos trinta e três anos para cá, o papel deixou de ser escudo e virou arma. Uso a escrita para sobreviver e já não posso mais esconder o que me aflige. Tampouco achar que silenciando a depressão vou proteger quem convive comigo.
Dividir o mesmo teto é viver com as fraturas expostas.
Agora entendo que ter o monstro em permanência não é um terror, nem anúncio do fim da esperança. Não deixar a angústia ser maior que o meu tesão pela vida é um percurso que precisa de manutenção constante. Contrariando o anseio de solucionar tudo para ontem, aceito, enfim, que equilíbrio leva tempo. E talvez precise de bem mais que dez anos para conquistá-lo.
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Eita, chegou muita gente nova desde a última edição. Obrigada e boas vindas! Escrevo sobre ser estrangeira em todas acepções do termo. Também abordo livros, cinema, música, e como eles costuram meu cotidiano.
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Um cheeeiro, e até a próxima!
texto fortíssimo, gerou vários momentos de identificação por aqui...
Lidy, que texto profundo. Não é fácil conviver com nossos demônios e apresentá-los a quem amamos.
Mas você mesma deu o papo, olifantenpaadjes! Que curioso!
Um abraço e feliz novo ciclo!