Quando não existem conexões, é preciso inventá-las. Aprender língua nova requer tempo, mas podemos acessar histórias e tradições dum país nas línguas que dominamos. Neste campo há poucas regras, perder-se nesses enredos é mais prazeroso que quebrar a cabeça tentando entender por que alguém em sã consciência quebraria um verbo na frase. Em qualquer coordenada geográfica, tradições orais, mitos e cartas aparecem na origem dos primeiros fatos históricos. Muito me intriga saber o que rolou quando as pessoas eram iletradas, se de fato restou algo dessas populações.
Tenho fascínio pela mistura destes elementos, e é meu modo predileto de construir os primeiros laços com a cultura de um lugar até então desconhecido por mim.
A bagunça me envolve. Fantasiar sobre fatos e também especulações. No lugar onde resido, em particular, acessar tradições ajudou no entendimento do pragmatismo, da pão durice, e da forte capacidade de negociação dos holandeses. Fora das horas de trabalho, ainda nos primórdios deste micropaís, já existia paixão pela normalidade. Já era um povo básico, sem muita firula, que gosta de curtir a vida sem extravagâncias.
Tanto que faltou tempo útil para gastar na cozinha e de repente criar pratos típicos.
Cheguei pouco antes da pandemia, retardando ligações com a sociedade holandesa. Contando com esses buracos na narrativa, em três anos obtive conhecimento suficiente para contextualizar comportamentos que me pareciam atípicos e até ter certa empatia. Entendi o quanto a gramática é econômica, e logo me vi encurtando as frases, assim como os holandeses. Isso no inglês, que já dominava e era o que permitia me comunicar no aguardo pelo domínio do holandês (spoiler: ele segue perdido no caminho).
Veio a compreensão cultural, mas era difícil aguentar o cheiro forte das barracas de peixe frito. Para quem tem gastrite, é complicado engolir o país da fritura. O holandês soava como vinil arranhado ao meu arcabouço latim.
Tive que recorrer às janelas.
Numa vida inteira no Brasil, aprendi a ter ouvidos apurados. Nada conveniente pescar conversas alheias em cafés e transportes públicos, porém não resistia. Nem me interessava tanto saber os detalhes. Ficava tentada ao ouvir um “ele nem imagina!” e pensar em quem era esse cara e o que faria dele tão descolado da realidade a ponto de não imaginar o que aquela moça estava a dizer.
Tinha também algum encanto em ter diálogos improváveis no ônibus que atravessava a Rebouças até a Consolação. Não poderia prever um desconhecido entrando na minha conversa sobre Raça Negra com uma amiga para falar sobre o quanto amava Chiclete com Banana.
Mantive a prática na França, porém mais tímida. Diferente da Holanda, cheguei na França quase pronta. Tinha recursos para amortecer a queda. Domínio da língua, mestrado que me demandava atenção, e pelo menos sete anos nas costas lendo e me informando sobre a perspectiva dos franceses sobre a vida.
Na Holanda me restou a especulação das cortinas abertas, ou da ausência de qualquer tecido cobrindo as janelas. No começo pareceu um absurdo deixar a vida escancarada, mas normalizei e passei a treinar o olhar para anotar os detalhes sem parecer intrusiva. Era a esperança de achar elementos que me ajudassem a me conectar de algum jeito com os locais.
Comecei por fora. Ainda é comum esbarrar em adesivos ou pelúcias anunciando a chegada de um bebê. Depois me perco noutros detalhes. Não sou indiferente a como as pessoas arrumam a sala, quem enche espaço com plantas. Dá até vontade de tocar a campainha e ver se sabem como nos ajudar a acabar com as pragas que infestam nossa Strelitzia reginae. Às vezes a cozinha fica de frente pra janela, e vejo holandeses felizes comendo pão seco com queijo fatiado. Outras vezes reparo na decoração do escritório, que pelo design da casa fica de frente pra rua.
Também me distraio em busca de bichinhos. Temos desde cachorros manchando o vidro com focinho até gatos dormindo ou de olho nas fofocas da vizinhança. Pego esses elementos para embarcar no universo alheio. Dessas observações crio breves ficções.
Trazer nova roupagem a uma prática antiga ajudou a me sentir mais em casa num território até então adverso. Carregar nossos hábitos conosco mundo afora e notar que podem existir sem causar confrontos numa nova realidade é um jeito de se integrar. Numa camada mais abstrata, as janelas descortinadas servem de abertura dos holandeses ao meu olhar estrangeiro.
Talvez não queiram se misturar, ou não saibam como. Mas me permitem observar e encontrar eventuais elementos em comum que possam nos conectar sem precisarmos trocar uma palavra.
São Paulo me acolheu por sete anos. No 29 de agosto de 2017, entrei no avião que faria São Paulo -> Paris rumo a uma vida de improbabilidades, longe da minha terra. Pelo visto gostei, pois habito neste lugar onde os anos bagunçam e até me fazem perder alguns traços de pertencimento.
Introduções nunca passam ilesas. Sem precisar colocar Brasil na frase, o sotaque e os gestos afobados levantam bandeiras de portadora de registro nacional, CPF, passaporte azulado com estrelinhas douradas. Desfazer-se de origens é impossível, assim como manter sua integridade.
Descarga elétrica do tempo. Celebração descabida para quem lê, carregada para quem protagoniza. Sete anos entrando no mesmo rio da imigração e mexendo no DNA agora impregnado pelo estigma da origem incerta. Nem lá, nem cá.
Vamos continuar esta conversa?
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Um cheeeiro e até a próxima!
Que delícia te ler! Me revi no seu texto eu, expatriada em Portugal já há dois anos e meio, com saudade a exprimir-se em lágrimas quando ouço músicas e notícias da minha terra carioca brasilis. Que sempre chorei aí ouvir o Ouviram do Ipiranga, às margens plácidas, mesmo quando habitava as tais margens, não paulistas mas cariocas! Obrigada!