[Edição #34]
No começo, ligava a televisão. Os telejornais e novelas serviam de trilha sonora às tarefas domésticas e mesmo às horas de lazer desmanchando no sofá. Se o apartamento pedisse faxina, trocava a TV por algum CD ou playlist. Quando me mudei para um apartamento parcamente mobiliado na França, levei comigo apenas o hábito da música. Quase sempre caía no embalo e cantava e dançava junto, às vezes até me filmava e compartilhava com amigos em tempos menos tímidos de Instagram. Nessas danças descompassadas da solidão, os ruídos me ensinaram a encontrar conforto no silêncio. Não ter ninguém além de mim para pegar na minha mão por vezes doía, mas o tempo mostrou que a solidão era também uma grande amiga.
Se nos dez anos em que vivi sozinha fizesse um balanço das horas passadas entre os tocadores digitais e os muitos CDS que hoje juntam pó, esquecidos na casa dos meus pais, tomaria um susto com o número. Descobrir novas bandas e ouvir álbuns de cabo a rabo foi por bastante tempo o meu traço de personalidade. Tanto as melodias como as letras eram minha forma de me conectar com o que me é mais íntimo. Ao longo dos anos, foi também o jeito mais fácil de comunicar o que rolava nessa cabeça aos outros.
Comecei com frases coladas junto ao meu username no MSN. Caso seja você um desavisado jovem, as pessoas se comunicavam online por meio de caixinhas de bate-papo e um programa de comunicação instantânea chamado ICQ, que acabou substituído por outro programa chamado MSN. Ouso dizer que era nosso WhatsApp da época, que permitia trocas em tempo real com pessoas que não estavam no mesmo espaço físico que nós. Os caracteres contados do MSN evoluíram para postagens no livejournal e mais tarde no blogspot. Abria ou concluía os textos com versos das canções favoritas do momento.
Ver Hirayama (Kôji Yakusho) sorrir quando a fita K7 começava a tocar no carro me fez viajar de volta aos tempos em que estive num relacionamento monogâmico comigo mesma. Em Perfect Days (2022, dirigido por Wim Wenders), o espectador é voyeur da rotina de Hirayama. Ele desperta, dobra o futon e o empurra para um canto. Escova os dentes, dá água às plantas, veste o macacão e desce as escadas. Coloca o aparelho fotográfico no bolso, pega um café enlatado na máquina distribuidora e entra no carro. Escolhe a trilha da manhã entre a pequena coleção de fitas K7 e atravessa Tokyo para cumprir com as obrigações do dia: limpar os banheiros públicos da cidade.
Os hábitos do protagonista não possuem nada de extraordinário. Na maior parte do tempo ele repete gestos metodicamente, retorna aos mesmos lugares, e qualquer incidente que escape do roteiro habitual nem parece abalá-lo. É como encontrar algo que nos intriga no meio de uma caminhada. A gente para, pega o que precisa pegar daquela situação, e segue o baile.
A mentes demasiadamente afetadas pela tristeza, é recomendado estabelecer uma rotina. Repetir ações e designar padrões para atividades diárias ajuda a assimilar a realidade com o peso de uma pluma. Moldar o cotidiano na repetição ajuda a normalizar um punhado de coisas e relaxar o caminho da tristeza entre o coração e o cérebro. Normalizar a repetição, ao que parece, prepara o indivíduo a lidar melhor com todo tipo de surpresa que desponta no percurso. Seja ela boa ou má.
Wim Wenders insiste nessa repetição onde, ao fim da projeção, podemos nomear todas as etapas da rotina de Hirayama sem errar a ordem. Pode descer goela abaixo como um banho de tédio, mas para mim veio como um poema aos solitários. Muito se fala na sétima arte sobre o amor e relacionar-se com os outros, mas pouco se diz sobre a solidão. Na nossa sociedade, ser sozinho parece ser um crime.
Com uma década nadando no lago caudaloso da solidão no histórico, saio na contramão e bato o pé contra essa forma engessada de se relacionar onde a felicidade plena depende de estarmos com alguém. Dez anos de solteirice me ensinaram que antes de mergulhar na realidade a dois, é fundamental tirar o melhor de uma relação consigo mesma. Ter serenidade nas trocas em silêncio diante do espelho acalma corações inquietos e facilita gradualmente o encontro com outras pessoas. Após tantos anos me levando para sair, aprendi a desfrutar mais de encontros com amigos. E igualmente a negociar melhor escolhas diárias que agora respingam na realidade do meu parceiro.
Para além do retrato de solidão, bisbilhotar a vida de Hirayama é também um prato cheio para confabular a respeito dos caminhos que o levaram a essa etapa que vemos em cena. Ao receber uma visita surpresa da sobrinha, ele toma um susto, mas não demora a adaptar a rotina com essa presença extra no cotidiano. Quando a irmã dele aparece para buscar a filha, há indícios de que eles pertencem a uma família bem abastada. O que parece ainda mais absurdo ao pensar neste homem que supostamente largou tudo para viver num apartamento minúsculo e viver com um salário de limpador de banheiros públicos.
Wim Wenders traça um panorama onde nos incentiva a observar as nossas escolhas sem tanto julgamento. Ele se demora nos detalhes e quer, claro, nos mostrar a beleza nas pequenas coisas. Mas não tenta romantizar uma vida 'simples’ e afastada da família. O que ele faz em Perfect Days é nós dizer que se importar menos não é má ideia.
Assim como podemos traçar um punhado de teorias sobre o passado de Hirayama a avaliar as suas decisões no presente, quem nos conhece há anos ou quem nos observa à distância sempre terá uma opinião. Cabe a nós filtrar opções e decidir o que nos movimenta. Escolher elementos que cabem na nossa realidade e nos permitem tocar o barco mesmo em dias de tempestade.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
cara, que baita texto. obrigado por ele!
Dia desses vi em uma entrevista, um jovem perguntando a uma senhora de mais de 90 anos qual conselho daria para as pessoas sobre coisas importantes a se olhar para ter uma vida com mais presença e entre alguns conselhos, o principal, segundo ela, era saber estar bem consigo mesma, gostar da sua própria companhia.
Concordo com toda certeza. Estar na sua própria companhia muda muito dentro da gente.