Saúde pra lá de mental
ou como lançar os meus textos ao mundo me ajuda a lidar com os parafusos soltos
[Edição #40]
"Não sei o que procuro quando escrevo. E, além disso, será que estou procurando alguma coisa? Tenho projetos, desejos de livros, e é muito urgente, importante, realizá-los. Quando os escrevo, às vezes me pergunto: o que estou buscando? A resposta geralmente é: salvar algo que aconteceu, ou está acontecendo hoje, e que desaparecerá. Isso está explicitamente escrito no final de Os Anos: "Salvar alguma coisa do tempo onde nunca mais seremos". Não se trata de procurar o tempo perdido, mas de tornar tangível a passagem do tempo, mostrando como o tempo fugiu e como ele nos leva com ele."*
A gente nunca sabe o que há de encontrar lá dentro. É um pouco como tatear no escuro e tentar adivinhar a forma das coisas para evitar tropeços. Encontrar o interruptor e acender a luz ajuda a enxergar melhor, mas os primeiros minutos de iluminação costumam causar algum desconforto aos olhos. Tive poucos recursos ao iniciar a jornada de autoconhecimento. Ninguém para alcançar minha mão do outro lado, nenhuma voz de fundo a me guiar. Quem mais aguentou o fardo foi o papel, as canetas, lápis, e os dedos constantemente borrados. Até mesmo minhas mãos buscam algum conforto na hora de expelir incômodos.
Tinha certo recalque por não acertar uma linha ao tentar desenhar, e portanto só me restava a tentativa de colocar as palavras para dançar. Às vezes até rolava um ballet clássico, mas quase sempre terminava num genérico de dança contemporânea com a melancolia decadente da dança de salão no fim de noite. Quando descaralhada das ideias, desentendida das monstruosidades que passavam pela minha cabeça, playlists de arquivos .mp3 cuidadosamente montadas ajudavam a segurar as pontas.
É primorosa capacidade em compor e acordar melodias a essas coisas meio inexplicáveis que sentimos. Admirava a capacidade alheia e enxergava acolhimento. Se tinha quem subisse aos palcos para cantar dores tão similares às que sentia, talvez não estivesse tão só. E assim seguia o ritual, ao som das guitarras nervosas e as vozes desgarradas do grunge e do shoegaze.
Junto aos fones de ouvido, criei a narrativa de que era só uma fase e recorri aos rabiscos. Não apetecia a ideia de importunar as pessoas da casa com isso. Os adultos já tinham coisas demais a lhes ocupar a cabeça e tempo de menos para bobajadas adolescentes.
Acumulei punhados de anos nessa dinâmica. Até o dia em que a capacidade da literatura, do cinema e da música em me pegar no colo enfraqueceu. Ao invés de fingir ter uma mão para segurar enquanto explicava minha confusão, fui atrás de alguém em carne e osso que oferecesse a dose extra que me faltava.
Três anos de psicanálise me tiraram o medo de soar repetitiva. A psicanalista disse uma vez que se algo se repete à exaustão, é porque tem motivo de ser. Que a repetição provavelmente faz parte do movimento para sair até conseguir se dissipar em definitivo. A coragem em buscar ajuda e a persistência em não deixar de me investigar após esses primeiros três anos parecia suficiente. Achei que talvez existisse prazo, que uma hora a investigação se esgotaria e viveria bem resolvida com todas as minhas questões.
Quase dez anos após me deitar num divã pela primeira vez e de massacrar o discurso de que um psiquiatra me transformaria numa desalmada, a repetição voltou. Queria me mostrar que qualquer monstro pode se reinventar e achar um jeito mais interessante de se vestir.
Em dezembro do ano passado, sabendo da pausa no curso de holandês, baixei o aplicativo Drops e passei a usá-lo por cinco minutos diariamente. Sem a pressão de revisar frases e estudar gramática, foi fácil criar constância enquanto expandia o vocabulário. Nessa brincadeira aprendi a dizer saúde mental em holandês: de geestelijke gezondheid. Palavrão cheio de letras e de pronúncia difícil para um língua que já não é das mais fáceis.
Desde então fiquei com isso na cabeça. Saúde mental enquanto palavrão, esse monstrão que em outras línguas é até complicado de se pronunciar. Mudei de psicóloga este mês enquanto recebia uma mensagem dizendo que a plataforma Tinyletter, onde tive minha primeira tentativa de newsletter, seria descontinuada. Estava no processo de revisitar minha história e entender um burnout quando caí no buraco das memórias ao fazer backup dos textos abandonados no Tinyletter.
Fazer esse movimento de releitura abriu meus olhos para questões que já davam sinais no passado. Pegar a monstruosidade da saúde pra lá de mental pelas mãos é corajoso, claro, e nós saímos mais fortes dessa jornada. Ninguém vira a definição de resiliência do dia pra noite. Contudo há sempre espaço para cair mais um pouco. Se a sua mente já é meio molenga de base, as brechas da fragilidade podem ser fatais.
Mas sempre se dá um jeito.
Sem a deixa do fim da plataforma que por anos a hospedou, talvez não parasse para reler o arquivo da minha antiga newsletter. Ter esse contato reforçou a potência da minha coragem em buscar amparo nas palavras e, na mesma medida, consolidou a importância em perder o medo de jogá-las no mundo.
"(...) Sob essa perspectiva, não existe algo que chamamos de íntimo, existem apenas coisas que são vivenciadas de maneira singular e particular - é para si mesmo e para mais ninguém que as coisas acontecem -, mas a literatura consiste em escrever essas coisas pessoais de modo impessoal, em tentar alcançar o universal, em fazer o que Jean-Paul Sartre chamou de "universal singular". Só assim a literatura pode "quebrar solidões". Somente assim as experiências de vergonha, de paixão, de ciúme, de passagem do tempo, de morte de entes queridos, todas essas coisas da vida, podem ser compartilhadas."**
Rabisquei a internet usando diversas plataformas, tentativa inconsciente de alcançar o meu "universal singular". Se nos idos de 2015 busquei uma mão para me amparar, encontrei outras do outro lado da tela. Deixar as palavras circularem me proporcionou trocas únicas, e ainda o faz.
Criei Estrangeirismos discreta, até meio tímida. Em tudo que fiz na internet até então, a divulgação consistia basicamente em deixar comentários em outros blogs. Daí me peguei mandando o link em grupos, convidando as pessoas a assinarem e me lerem no fim de oficinas de escrita. Lançar o desafio de publicar um texto inédito quinzenalmente me transformou em alguém destemida e meio desgarrada de julgamentos.
Ainda é estranho pensar que esta é a quadragésima edição de Estrangeirismos. Dou-me tapinhas nas costas enquanto digo “Girl, I can’t believe we made it!”. Escrever é um ato de fato solitário, mas não precisa ser sempre assim. Obrigada a quem me lê e, mesmo sem saber, me ajuda a enfrentar o monstro da saúde mental - e a me apoiar na jornada torta que é se assumir escritora.
* Trecho em tradução livre do livro "Retour à Yvetot, de Annie Ernaux". Passagem original: "Je ne sais pas ce que je recherche en écrivant. Et d'ailleurs, est-ce que je recherche quelque chose ? Il me vient des projets, des désirs de livres et il est très urgent, important, de les faire. Quand je les écris, il m'arrive de poser nettement la question : qu'est-ce que je cherche? La réponse est souvent : sauver quelque chose qui a eu lieu, ou qui se passe aujourd'hui et qui disparaîtra. C'est explicitement écrit à la toute fin des Années : « Sauver quelque chose du temps où l'on ne sera plus jamais. » Ce n'est pas rechercher le temps perdu, c'est rendre sensible le passage du temps, montrer comme le temps a fui et comme il nous emporte tous."
** Trecho em tradução livre do livro "Retour à Yvetot", de Annie Ernaux. Passagem original: "(...) Dans cette perspective, il n'existe pas ce que l'on appelle l'intime, il n'y a que des choses qui sont vécues de façon singulière, particulière - c'est à soi et à personne d'autre que les choses arrivent -, mais la littérature consiste à écrire ces choses personnelles sur un mode impersonnel, à essayer d'atteindre l'universel, de faire ce que Jean-Paul Sartre a appelé du « singulier universel ». C'est seulement ainsi que la littérature « brise les solitudes ». Seulement ainsi que les expériences de la honte, de la passion amoureuse, de la jalousie, du temps qui passe, des proches qui meurent, toutes ces choses de la vie, peuvent être partagées."
Para além dos Estrangeirismos
Tá, vou trapacear um pouquinho porque a edição de fevereiro para apoiadores ficou particularmente boa. Se quiser dar aquele apoio extra ao meu trabalho, assine a versão paga :)
Esse episódio do podcast Gostosas & Choronas, da Lela Brandão. Pra quem também está cansada de estar cansada.
Falando sobre saúde mental, recomendo a leitura da pesquisa Esgotadas, do Think Olga. Ela foi citada em alguns podcasts que ouvi nos últimos meses e fui atrás só para chorar mais um pouco, mas agora usando dados de uma pesquisa.
Esse episódio do podcast Prato Cheio sobre amamentação, importantíssimo mesmo pra quem passa longe da ideia de maternidade.
Os incômodos de Pobres Criaturas, analisados pela sempre ótima Tarcila.
Bem antes do Will Butler ser cancelado, ele lançou o videoclipe de Anna, protagonizado por Emma Stone. Adorei relembrá-lo esses dias:
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Muito, muito bom, Lidy! Adorei saber um pouco mais da sua trajetória como escritora. Realmente, você venceu. Estava longe de ser apenas uma fase, e o Estrangeirismos está aí para provar. Parabéns pela 40ª edição! Você definitivamente está salvando muita coisa, como disse a Annie.
P.S.: adorei o "molenga de base" hahahah
que texto lindo, sincero, delicado e necessário. 🥹