[Edição #54]
Por anos coloquei-a na categoria de stupid, silly past-time of mine*. Do fazer sem intenção, passatempo. O diário com flores de cerejeira na capa, fechado com cadeado, e cadernos cujas folhas em branco sobreviviam ao fim do ano letivo. Vejo, numa vaga lembrança, o compilado de escritos dos alunos do Ensino Fundamental, impresso na escola, perfurado em dois pontos por onde transpassava a fita vermelha. Minha contribuição veio em forma de poema sobre uma árvore.
Para quem hoje em dia se demora ao tentar estabelecer um ponto, começo a rir sozinha quando penso que aos sete anos brinquei de fazer poesia. Não sei dizer a que ponto tive sucesso na empreitada. Puxei na memória algum vestígio de elogio ou crítica, sem sucesso.
Piso no freio, interpelada pelo círculo vermelho, cortado pelo caps lock em branco. PARE, esfregado na minha cara. Vem assim, na língua mãe. Até porque na Holanda o agressivo STOP não existe. Tudo me pede para parar. Se ao menos tivesse feito mais do que o poema solicitado pela professora, tentado uma especialização, acreditado que poderia fazer daquilo profissão ainda jovem.
Já no início dos anos 2000, contudo, ouvia que todos os autores que fizeram parte das horas de leituras acumuladas noite adentro eram exceções. Ou que publicavam livros em paralelo a um trabalho de verdade. Na adolescência até cheguei a pesquisar sobre carga horária de algumas profissões, questionando se sobraria tempo concreto e espaço mental para dedicar à escrita em paralelo, no tempo livre.
Hoje mesmo, acordei pensando naquela viagem ao Japão. Só sairá do papel se tiver grana, e ela só vem do 9-5, 7/7. Tira-me a alma, mas põe mesa.
Nas tardes da adolescência flertando com a escrita, fiz amizade virtual com uma carioca, Marina. Nos conhecemos nas marés da World Wide Web, num fórum para fãs de Silverchair. Era uns dois anos mais velha que meus então 13 anos. Amava escrever, e acabara de encerrar seu primeiro romance. Fui leitora beta.
Imprimiu algumas edições de forma independente para distribuir entre familiares e amigos. Rasguei o envelope e toquei o livro desacreditada, sorrindo ao me deparar com meu nome nos agradecimentos. Parecia irreal uma adolescente finalizar um romance. Até então achava que aquilo era coisa de ‘gente grande’.
Pausar diários e tentar fazer como aqueles autores amontoados na estante começou a me tentar. Vivia minha transição, deixando os livros da saga Harry Potter comerem pó num canto para arriscar-me em territórios mais sombrios. Lia Stephen King e Anne Rice, ainda sem saber que logo também ficariam para trás ao conhecer Caio Fernando Abreu, Carlos Drummond de Andrade, Ana Cristina César, e Clarice Lispector**.
Quis eu também brincar de ser escritora.
Sentei-me na frente do CPU barulhento, que ligava pressionando o botão com o dedão do pé. Ocupava o escritório ao lado do meu quarto com o Neon Ballroom, do Silverchair, saindo cheio de ruídos das parcas caixas de som, enquanto deitava as mãos no teclado.
Em alguns meses, tinha 120 páginas de Word. Engavetei numa pasta escondidas entre tantas das minhas tralhas virtuais, em meio aos protestos de Marina, que tentava me convencer a imprimi-lo. Abri o arquivo dois anos mais tarde, com bagagem literária mais robusta nas costas. Dos 15 aos 16 anos, virei adolescente raivosa.
Engoli toda a empatia possível pela minha versão que ao menos tentou. Arrastei o arquivo para a lixeira e a esvaziei.
Ingressei na faculdade de Jornalismo aos 17 anos, sonhando me tornar repórter. Saí quatro anos mais tarde assessora de imprensa e convencida que a escrita nunca quis ter comigo. Voltou ao papel de stupid, silly past-time, no formato de blogs e em cadernos nos quais só escrevia a lápis.
Até 2022. O cérebro carcomido pela depressão, insatisfeito pelas ficções que então devorava. Despejar garranchos virou momento de paz. Só a escrita visceral era possível. Passava da hora de tratar o que me saía das mãos com mais respeito.
Numa das minhas primeiras oficinas de escrita, lembro-me da professora dizendo para não chamarmos nossos escritos de “textinho”. Silenciei vozes de comparação, segurei os dedos para não sair editando enquanto escrevia. Encarei o que produzira até então como algo inteiro. TEXTO. Grandão, completo em suas cinco letras.
Desprendimento súbito rendeu alguma liberdade. Arranjei espaço online, e no postar a cada duas semanas vi partir o medo de convidar desconhecidos a me lerem.
Surgiu espaço para reler textos antigos sem sentir vergonha, reconhecendo o que havia melhorado e o que ainda se repetia e poderia melhorar. We went on wholehearted*. O olhar crítico amadureceu, trouxe seriedade ao relacionamento com a escrita e isso estremeceu nossa relação.
Até sonhar que caminhava na praia com o arquivo deletado aos quinze anos quando, do mais inesperado nada, uma gaivota o roubava de minhas mãos e voava longe.
Escrever é laborioso. Pagar por cursos e buscar leituras críticas é investimento pessoal, mas quanto mais me aprofundo no processo, percebo que há tudo, menos simplicidade. É trabalho de verdade. Mas apesar de todo suor envolvido, escrever me traz a paz que nunca encontrei em minutos de meditação ou horas de Yoga.
Me perco e tão logo me encontro. É um pé de manga brotando no jardim de casa, no meio do hemisfério norte úmido e pouco favorável ao seu florescer.
Como seguir com o trabalho que paga as contas quando a falta mal resolvida dos meus 13 anos insiste em me perturbar?
Sou uma Madame Bovary do multiverso querendo tomar veneno para não ter que lidar com as consequências de trair minha adolescente interior com toda sorte de tentativas profissionais frustradas. De fora, devo parecer a criança que se joga no chão do supermercado fazendo birra por um pacote de passatempo recheado. A vida jogando as placas de PARE em caminho esburacados, meu pisar no freio escorregando em inseguranças.
Quando o sonho não é considerado trabalho de verdade e todo mundo o vê como lazer, tá liberado sentir menos culpa por me sentir mentalmente exausta e chiar as horas de sono e de ócio mais curtas fora dos dias úteis?
Deixo ao tempo a tarefa de reduzir o querer tudo para ontem. Converso com as vozes da minha cabeça, peço trégua. Lembro que ainda temos tempo para trazer de volta o brio, e resolver a dívida que tenho comigo em paralelo. Tudo isso em paralelo a ser uma adulta séria que precisa lidar com Outlook e Teams de segunda a sexta.
“Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão”.
Clarice Lispector em “A legião estrangeira”
*Parting Gift é uma composição de Fiona Apple, está no disco Extraordinary Machine. Fala sobre uma relação meio lixo que ela foi levando até ver que não tinha mais por que insistir. As frases em itálico, com um asterisco, foram surrupiadas dela. Minha relação com a escrita também foi um pouco tóxica, mas não queria que este texto fosse um parting gift antes de cada uma seguir seu rumo.
Tô tentando achar outra música mais felizinha da Fiona para mudar nossa trilha sonora. Tô mirando em Cosmonauts, mas acho que estamos numa fase Limp…
**Tia Tacilda, se por ventura ler este texto, obrigada. Você foi a melhor influenciadora literária do mundo <3
Vamos continuar esta conversa?
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Não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
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Um cheeeiro e até a próxima!
Teu texto me fez lembrar de uma história que eu tambéme screvi quando tinha uns 13, 14 anos, e que na adolescência terminei apagando sem dó nem piedade. Pensava que era ruim ou coisa de criança. Mas ainda hoje lembro vagamente da história e das personagens, e do tanto que tinha significado pra mim criar algo com começo, meio e fim. Que bom que crescemos e aprendemos a ter mais compaixão com nós mesmas, não é?