[Edição #50]
Invisibilidade como processo. Começa de modo prático. Ser a última da linhagem reduz inquietações paternas. A avó vê a caçula do filho mais velho como só mais um número, fácil a descartar em meio a enxurrada de netos. Corre o tempo, entre infância e adolescência, a fase sendo a mais alta da sala durou pouco tempo. Sobrava ao formar grupos para trabalhos escolares, ou para os times de vôlei na educação física. Depois, nos convites para festas. Tinha vocação para o sumiço.
Para apontar erros, contudo, esse apagamento ganhava cor. Vinham no melhor amarelo fluorescente do estojo de canetinhas. O péssimo desempenho em matemática, a recusa em concluir o estúpido projeto escolar de recriar cada letra do alfabeto E os números de zero a dez usando tangram.
Fofocas na adolescência pareciam mais perversas quando saíam da minha boca. Assim como os meus impulsos em ser honesta, reconhecidos como grosseria. Gestos desengonçados viraram sinônimo de indelicadeza, embora tivesse comigo que o mau jeito era consequência do físico, esticado de supetão.
Havia também o “não faça como sua irmã”, ou ”você não quer repetir os erros da sua prima”. Tive recursos para me transformar numa pessoa detestável, hoje acho que não estou longe. Porém naquela época optei por cultivar a invisibilidade. Guardava teoria de que se não me mostrasse muito, ninguém me notaria. O que me caía bem. Atravessei a ponte da adolescência para a vida adulta estrangeira ao meu lugar no mundo.
Rejeitava a figura diante do espelho, mais um corpo dentre outros nas ruas e ônibus atulhados de São Paulo. Sumir no interior do Mato Grosso do Sul era fácil, numa cidade com mais de 12 milhões de habitantes poderia até ter o luxo de tentar me camuflar. Encarava o céu cravado de luzes acessas nos prédios, visualizando a minha insignificância perto daquele mundaréu de gente.
No restaurante por quilo, pesava o prato atenta para não passar em hipótese alguma dos R$12. Encolheram as porções de comida, pulava refeições quando convinha. Comecei a correr e ir quase todos os dias à academia. Apagar-me virou questão física.
A carne enxugava, e por dentro aprendia a ser boa sem me exceder. Dificilmente me encontrariam levantando a mão no meio da aula, ou pedindo ajuda no trabalho sem antes dar jeito de encontrar a resposta sozinha. Deve ter saído deste intervalo o primeiro embate. Nos meus 20 anos, desarmava-me a curiosidade sobre como era ser vista.
Ser namorada, amiga conselheira, assessora de imprensa, corredora, filha que deu certo. Ter reconhecimento nos olhares cruzados. Nenhum rótulo me cabia, contudo, confabulava com capricho, me jogando sem perceber em alguns buracos que me marcaram a pele de cicatrizes.
Permanecia o estranhamento do corpo, explodia a indecisão entre seguir às escondidas ou tentar sair de trás das cortinas. Risquei a pele à máquina e tinta. Estrangeira ao existir, porém, viva. Sentia dor e passei a investigar pontos mais sensíveis, onde a pele doía mais. Cada agulhada, um indício de potencial à mudança.
Se brincar não era tão apagada e indiferente quanto presumia.
Contemplei potencial no deslocamento ao outro lado do Oceano Atlântico como solução. Num território novo começaria com a página em branco, pronta para ser rabiscada por novos eventos. Livre de noias antigas, renovada pela psicanálise. Ignorando a bagagem carregada de cadernos velhos e sujos.
O macacão de imigrante, contudo, vem sempre num tamanho até duas vezes menor, todo mundo nota. Fiquei sem alternativas, tive que dar jeito na invisibilidade de uma vida inteira.
Do outro lado da roda, a realização de que o holofote é violento para fotossensíveis. Ninguém entende que você não escolheu o macacão apertado, nem te deram opção. Virei especialista em usar contextos culturais enquanto justificativa. Gastava saliva e rebatiam com chacota. Quando a tradição é deles, todo mundo deve achar bonito. Narciso acha feio o que não é espelho, disso entendem bem.
Ignorei o som agudo da voz dos holandeses e passei a encarar meus humildes marcos históricos com lupa, nos mínimos detalhes. Cansei de buscar vantagens em ser invisível, transferi o foco no objetivo de ter a autoestima lapidada como a dos holandeses.
Voltar ao meio acadêmico, trabalhar como vigia de museu ou com atendimento ao cliente são passos gigantescos, sobretudo se executados em língua estrangeira. Conversa inteira em holandês, mesmo tendo durado só 5 minutos? Entra na mesma conta. Dirigir sozinha pela primeira vez e ter alta do burnout também.
Devorei com urgência feridas, validar a própria existência dá fome. Mas aprendi a degustar também alegrias e conquistas. Pequenas só a quem observa de fora.
Duvido que um dia acostume a eterna chateação do céu cinza predominante. Mas essa versão estrangeira, dolorosamente bonita, ensina a passos lentos a valorizar minha carne. Tanta alta afirmação abriu os meus olhos ao meu valor, e quando dei por mim, já buscava tutoriais para meter um elástico no macacão apertado.
Tanta fome virou gula, me empanturrei a ponto de precisar aumentar um pouco mais a margem do elástico. Passando de irrelevância a visibilidade. Sair do invisível a ter presença é também processo, e isso de ter cor e peso é agora meu estranhamento. E também a minha luta.
Impactada em me dar conta do número. 50! Para quem lê, sobretudo aos que chegaram há pouco, saber a edição é irrelevante. Navego por temas similares, quase poderia apontar a linha editorial de Estrangeirismos, mas as cartas não possuem ligação direta. Quem leu uma publicação de janeiro pode ler outra de maio sem ter lido nada de 2023 que tudo estará sob controle. Enquanto autora, contudo, é um marco e tanto chegar a quinquagésima (tive que dar um Google) edição.
Sou facilmente impressionável.
Em tantos anos de escrita constante e diversos projetos frustrados, celebro o compromisso em não ter mais largado minha própria mão. Já tinha relatado o estado de abestalhamento quando cheguei à edição #40, mas é isso… fiz mais 10, 50 é metade de 100, não desistir de mim é o processo mais doido de todos os tempos.
(Juro que só volto a falar desses marcos caso chegue a 100 edições)
Aquele abraço apertado para quem apoia, curte, compartilha. Ter suporte é tão valoroso quanto essa autoconfiança em desenvolvimento. Obrigada!
Para além dos Estrangeirismos
Vamos continuar esta conversa?
Pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta pode demorar, mas chega. Chegou aqui há pouco? Sinta-se em casa! Agradeço por me aceitar receber na sua caixa de entrada a cada duas semanas. Espero que encontre conforto nesses escritos. Te convido a conferir publicações anteriores.
Não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último domingo de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro e até a próxima!
Eu adorei a analogia do macacão. Me fez refletir sobre algumas coisas aqui dentro.
Parabéns pela edição #50!