Combates e Metamorfoses de classe
Faz sentido reescrever nossas origens pra cair no gosto do público?
[Edição #65]
Na última curva dos 33 aos 34 anos, confesso, envergonhada, não conhecer tanto quanto gostaria da história de quem veio antes dos meus pais. Os meus avós maternos eram do Goiás. Já os avós paternos migraram de Barreiras, no interior da Bahia, para Goiânia. Cheguei ao mundo em condições mais confortáveis, as nossas migrações generosas não aconteceram pela busca de condições melhores. Os destinos eram definidos pelo trabalho do meu pai. Concursado, carregou minha mãe e cinco filhos nas costas pelo Mato Grosso do Sul. Moramos em Angélica, Aparecida do Taboado, e Cassilândia. Por último, nos instalamos e permanecemos na capital, Campo Grande.
A noção de falta só existia no âmbito das amizades. Descobri cedo a criatividade demoníaca das crianças que achavam meu corpo rechonchudo hilariante e desprezível. Minha saída estava nas histórias inventadas para as bonecas. Brincava sozinha por horas. Tanto tempo conversando só com vozes inventadas e amigos imaginários me transformou numa adolescente apegada, obcecada pelas minhas amigas. Gritava para quem quisesse ouvir o quanto elas eram as melhores pessoas do mundo.
Tive que lidar com meus lutos mais tarde, amadurecendo e entendendo que se relacionar demanda musculação emocional. Na ausência de profundidade nas trocas com outras pessoas, passei a encher os meus vazios no decorrer dos anos. Engordei a dificuldade em falar dos sentimentos e demorei até encontrar a minha turma. Cheia de buracos emocionais, mas plena em outras instâncias.
Debaixo do teto daquele recanto de dois adultos e cinco crianças, não faltou comida, roupa, bens materiais, condições para expandir as nossas capacidades intelectuais e conquistar independência financeira no futuro. Cursei jornalismo quando o diploma não era mais necessário para exercer a profissão, quer luxo maior que esse? Me graduei numa das melhores universidades do Brasil sem precisar de bolsa. Fiz curso de inglês na adolescência, tive paitrocínio para aprender francês enquanto estava na faculdade.
Consegui meu primeiro emprego, um estágio, com 20 anos. Já estava no terceiro ano de faculdade e não precisei me sustentar antes disso. Entrar no mercado de trabalho teve seus desafios, em grande parte no que toca a idealização. Ainda tinha aquela ilusão de jovem adulta que acredita no conceito de emprego & empresa ideais, mas até então não questionava o fato de me tornar proletária.
Trabalho é necessidade. Meu pai fez faculdade e prestou um concurso porque queria oferecer as melhores condições à sua família remendada. Teve muita garra e estômago, aliás. Trabalhou duro enquanto enfrentou um divórcio, assumiu a paternidade dos quatro filhos que a ex largou no colo dele, e ainda deu uma filha à mulher que escolheu para ser sua esposa alguns anos mais tarde. Para mim era movimento lógico seguir o mesmo protocolo.
Diferente dele, contudo, não estava num relacionamento e nem tinha filhos para sustentar. Tinha por objetivo único a independência financeira e veja bem, decidi usar parte do dinheiro que conquistei trabalhando para sentir o gosto do perrengue pela primeira vez na vida. Para minha surpresa, sem precisar passar num concurso, criei um nome. Fui assessora de imprensa. E, embora fosse difícil encontrar um trabalho CLT ‘ideal’, os freelas brotavam.
Mas eu nunca tinha comida a baguette que o diabo amassou. Empacotei uma carreira cheia de potencial para descobrir quem eu era longe da influência das minhas raízes.
Trago más notícias — vir de um lar abastado nem sempre é garantia de um futuro brilhante. Às vezes você vira uma imigrante que faz o trabalho que os locais não querem fazer, ou apanha para conseguir um emprego na sua área. Estou afogada na lama da frustração profissional, por sinal. Já deu para perceber pelos últimos textos que publiquei aqui.
Dito isso, observo, do alto dos meus privilégios, uma tendência literária que envolve a glamurizar um passado sofrido. Há um número significativo de escritores contemporâneos que, mesmo tendo vivido infâncias sem grandes privações, agora adotam o verniz de superação como marca autoral. Gente que até ontem não questionava a própria condição e não abria a boca para falar sobre ascender socialmente.
Não sou alheia ao mundo, conheci muitas pessoas de origem simples ao longo dos anos, que ralaram para conquistar alguma estabilidade. Gente que “chegou lá”, seja lá o que isso signifique num mundo regido por segregação social. Nasce daí o meu incômodo com essa estética do sofrimento fabricado. Ela banaliza as trajetórias de quem, de fato, ascendeu socialmente a duras penas.
Foi por isso que ler Annie Ernaux e Édouard Louis pela primeira vez me pareceu uma epifania. Eu andava meio saturada da literatura produzida por gente da elite. Inclusive entendo que haja autoridade nos nomes. Tem peso dizer que se graduou em Letras, ou que fez um mestrado em literatura numa faculdade renomada. As pessoas tendem a querer ler quem tem lattes ou fez curso do Luiz Assis, e não uma pessoa aleatória que conta os percalços da própria vida num blog.
Mas era isso — os autores publicados pertenciam a uma bolha de gente que circula nos mesmos espaços e reproduz os mesmos códigos. Os temas das obras, as referências, e até mesmo o estilo pareciam repetir um padrão excludente. Ernaux e Louis abriram uma brecha. Escreveram a experiência real de classe, com marcas de origem, o conflito pessoal de não se reconhecer mais e tentar romper com o lugar de onde vieram. Nas palavras de ambos, vislumbrei a possibilidade de que leitores com trajetórias parecidas às deles pudessem finalmente se ver numa literatura que não se envergonha de dizer de onde veio.
Li Combats et métamorphoses d’une femme de Édouard Louis, pensando na minha sorte por não ter atravessado uma infância sofrida deste tanto. Momento oportuno para reconhecer e abraçar meus privilégios. É uma honra ter tido condições confortáveis para, hoje em dia, afirmar com segurança que sou fluente em três línguas e me viro no exterior. Vejo a participação de Louis no programa Roda Viva orgulhosa, tornou-se um homem articulado, conquistou seu espaço no mundo. Achou um assento tão confortável que, sim, agora é considerado parte de uma elite intelectual. Mas debocha dela como ninguém.
Quando uma pessoa como a autora de A Boba da Corte, que nunca precisou dividir um quarto com dois (ou mais) irmãos ou pular refeições por falta de grana, resolve vestir a máscara de superação, o que se tem um apagamento dos verdadeiros desertores de classe*. Pelas perspectivas apresentadas tanto por Ernaux quanto por Louis, fica claro que o caminho da ascensão social é excruciante. Vem carregado de dor e culpa, marcas profundas que não cabem num textão publicado na rede social no enredo formatado de um livro feito sob medida pro mercado editorial.
Em vez de transformar o verniz da superação em identidade literária, mais vale se cobrir de honestidade. Não há demérito algum em ter crescido com estrutura, em não ter precisado se virar desde cedo. Também não há necessidade de se comparar com quem abriu mão de vínculos e de uma noção inicial de pertencimento para chegar onde está, tampouco com quem está do outro lado e já nasceu lendo Dostoiévski. Dá pra ocupar um lugar na elite sem precisar fantasiar a própria história.
Passou da hora de reconhecer o lugar de onde se fala. Se até quem venceu de verdade precisa provar o tempo inteiro que deu certo pra não ser empurrado de volta ao estigma, imagina o que acontece quando até a dor vira invenção? Prefiro ficar com Ernaux, com Louis e com todos que escrevem suas trajetórias com a autenticidade, encarando seus medos de frente. Que mais vozes como as deles sejam ouvidas — enquanto os farsantes se encolhem sob o peso das histórias que nunca viveram.
*Sobre desertores de classe e ascensão social, deixo a palavra com a minha amiga Nara, que abordou o tema a partir das vivências dela.
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Arreguei, dei pra trás, visitei o vale da desistência* e fiquei por lá. Tenho planos de voltar a enviar uma nova edição a cada duas semanas, mas ainda é cedo para dizer qualquer coisa sobre as minhas capacidades no momento. Medicada sou ótima, entretanto nem sempre. A partir de agora todas as edições de Estrangeirismos serão gratuitas.
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*Sou muito fã da Aline Valek e faço questão de espalhar a palavra dela, mas essa referência é só para quem a apoia financeiramente e leu a edição surpresa mais recente publicada por ela. Se você não conhece Aline, deveria! Leia Uma Palavra e aproveita para apoiar a escritora maravilhosa que ela é :)
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Um cheeeiro, e até a próxima!
Perfeito texto. Suspeito que veremos mais obras do tipo, porque se tem francês fazendo e tá fazendo sucesso é chic, é descolado, é tendência! Infância sofrida, se não teve, inventa! Autoficção pode ser ferramenta de rebranding, por que não?
Que texto maravilhoso.
Honestidade, falta honestidade e originalidade nessa galera que quer surfar a onda do momento.
Como diz o grande poeta: faz o teu, bença, deixa o dos outros.
Beijo!