[Edição #38]
I lied, I am
Just lowering your expectations
Half a mind that keeps the other second-guessing
Close my eyеs and count
-boygenius, Not strong enough
Ser mal visto por contrariar alguém muitas vezes diz mais sobre a outra pessoa do que sobre nós. Admiti-lo, contudo, é que nem aquela primeira colherada de sopa quente que queima o céu da boca. Já tentei até mapear o número de vezes em que me posicionei contrária a uma opinião, ou simplesmente disse não e precisei lidar com o silencioso desgosto da pessoa diante de mim. Cresci numa cultura onde a culpa cristã é rainha, e isso nunca ajudou ninguém no processo de expressar aversões.
O ciúme, por exemplo, é um dos sentimentos menos palatáveis para mim. Parou de me aborrecer depois de muito tempo (e terapia), mas já foi bastante problemático. Além de não assumir o sentimento, deixava-o me consumir.
Houve uma vez em que apresentei dois amigos. Ambos brasileiros, mas baseados em países diferentes. Num período em que estive fora do Brasil, a amiga perguntou se eu me importaria caso ela passasse o carnaval com esse amigo que lhe apresentei.
Pela primeira vez percebi que o ciúme nem se manifestou. Estava longe e me parecia excelente que dois amigos de círculos distintos pudessem se conectar e passar um bom momento juntos. Esse episódio mostrou que aquilo era sobre a amiga, e não sobre mim. Me pareceu honesto e até bonito da parte dela manifestar essa dúvida e checar se não seria nada que me causaria cheateação no futuro.
Se bancar sentimentos fosse fácil, psicólogos nem existiriam. É ainda mais espinhoso para quem tem a necessidade de agradar o tempo todo. Não julgo. Com a culpa passei noites infinitas, ela me ninando e ajudando a remoer infinidade de eventos. Demandou muitas sessões de psicanálise para só mais tarde enxergar questões com mais clareza. Opiniões poderiam soar controversas, mas manifestá-las com sinceridade era um movimento de contestação. Reclamar território, defender nosso ponto. Nem tudo que nos sai da boca tem o intuito de magoar.
O episódio dos amigos ocorreu em tempos de pouco autoconhecimento, no que chamo “pré-análise”. O primeiro desafio proposto pela psicanalista foi acolher sentimentos considerados ruins. Muito pela tal culpa cristã e por ter crescido numa sociedade onde tanto se faz só para agradar, era escandaloso não procurar a felicidade nas pequenas coisas. Onde já se viu? Se estava com saúde, empregada, tendo suporte de amigos e família, deveria sentir vergonha de reclamar em momentos de frustração.
Tive pavor da possibilidade de ser a amiga negativa que reclama demais, sobretudo por estar nessa posição privilegiada de ter uma vida da qual nunca poderia reclamar. A psicanalista me cutucava, e trouxe a pauta à tona em contínuas sessões. Perdi a conta das muitas vezes em que concordei em fazer algo só para não magoar ninguém. Ia além, transpondo a barreira e me colocando em situações horríveis pela necessidade de me desafiar e provar a mim mesma que não era uma fracote. Ser amiga, parceira ou filha dependia de concessões. Forçar a barra era sinal de admiração.
De tanto repensar esses incômodos tentei buscar respostas dentro de mim e pesar as reações das pessoas ao meu redor. Impossível saber como as pessoas vão recepcionar nossas falas e atitudes. Podemos tentar todo tipo de floreio, preparar o território, e ainda assim não dará para antecipar reações. Pessoas são mais complexas que uma breve equação. Gente não é ciência exata.
Transformei a verdade em exercício. Oferecia doses de honestidade quando me sentia confortável para tanto. Gradualmente entendi também o que buscava nas pessoas. Comecei a melhor me entender como gente, com qualidades e defeitos, e a querer ter por perto quem me acolha mesmo com as imperfeições.
Mudar de país serviu de filtro e deu o empurrão final para essas situações. Era inaceitável ver amizades acabando por estarem com inveja da minha partida ao estrangeiro. A tendência a romantizar a vida fora do Brasil é forte o suficiente para passar a impressão de que qualquer mudança é um ingresso só de ida para o Paraíso. E tudo bem. Ninguém conseguiria se colocar no meu lugar e sentir o quanto me machucava deixar tudo que construí para trás. Ainda mais partindo rumo a um deslocamento tão coberto de incertezas.
Só depois de muitas gargantas inflamadas e crises onde até a voz debandou entendi, mais uma vez, que aquilo era gente projetando frustrações na minha novidade. Quem me tratou como ingrata e não pôde oferecer amparo num momento vulnerável não tinha intenção de magoar.
Me agarrei a pedras cobertas de corais em marés intensas. Também busquei borboletas em campos cobertos por flores mortas. O desejo de encontrar beleza nas entrelinhas viveu entranhado em mim. Por que alguém contestaria minha gratidão sem conhecer a fundo as minhas vivências?
É insustentável contrariar o peito carregado diante de mágoas e frustrações. Por menores que parecessem aos olhos dos outros, eram pra mim imensos. As coisas têm a dimensão que damos a elas. E não cabe aos outros entendê-las, e tampouco julgá-las.
Acabei nos Países Baixos, onde a população se gaba por ser deveras honesta. Há quem se aproveite disso para apelar à grosseria, como é de praxe. Mas na maior parte do tempo as pessoas só não querem perder tempo dourando a pílula. Honestidade ajuda a resolver conflitos com eficácia, pois evita que fiquemos cheios de rodeios. Economizamos tempo e poupamos desgaste emocional.
Escrevo um manifesto em defesa da contrariedade por existir beleza feroz na honestidade. Dizer a verdade é cuidar das fundações e evitar problemas futuros. Na jornada de abrir o coração, dá para mostrar a própria essência e fazer a triagem de quem banca esse amontoado de sensações que nós somos.
Viver as dores ajuda a crescer por dentro. Qualquer sentimento ganhando proporções excessivas virou sinal de alerta, hoje sou mais atenta. A ideia de ofender alguém em qualquer grau é-me tenebrosa, mas não tenho controle sobre isso. Relações crescem na comunicação, e comunicação é via de mão dupla.
Descobrir, assumir e entender a imprevisibilidade das reações é das maiores dádivas da maturidade. Essas brechas de honestidade dão espaço inclusive para que as pessoas se sintam confortáveis para rebater nossas falas caso se sintam incomodadas. E é essa troca que agora procuro e cultivo nas minhas relações.
Esse texto é o segundo da trilogia do ódio. O primeiro foi enviado há duas semanas:
Na próxima edição encerramos esse blocão de desabafos. É que a digestão de um ano inteiro é lenta. Depois volto a jogar confete e serpentina para todos acharem que Carnaval não acabou.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Eu só li esse texto hoje, mas eu senti ele inteiro, acho que ainda mais, porque cruza justamente no meu momento de consciência sobre o impacto da transição que eu também fiz, saindo do Brasil e vindo morar na Argentina, que tem uma cultura bastante voltada para dizer o que pensa e em que as pessoas não se sentem mal por dizer não. Toda a jornada de mudança que você descreveu me foi bastante real, compartilho da maioria dos sentimentos que você dividiu. Eu levei bastante tempo para identificar que a causa por trás da quantidade absurda de doenças que me abateu e também do cansaço contínuo era lidar com todas essas sensações. E eu tenho aprendido, muito, com a contraridade. É algo em processo e sem resposta, mas eu sinto uma expansão de mim e das "verdades absolutas" que eu carregava sobre muitas coisas. Espero que você esteja bem por aí, senti teu texto como um abraço!