[Edição #37]
Estrada nenhuma resiste às ações do tempo. Foram construídas para esse fim. Concreto, betume e areia misturados para servir de travessia, levar pessoas de um ponto a outro. O impacto da movimentação de veículos traça histórias, criando deformações e buracos. No processo de desgaste inevitável e gradual das superfícies penso a minha aversão adquirida pelo perfeito, imaculado. Precisei despedaçar idealizações tantas vezes com o passar do tempo. No ano agora deixado para trás, aprendi a ver graça e até alguma beleza no desmonte de ideias.
A vida é uma estrada esburacada.
A cada janeiro me toma o desejo de escrever extensa lista de metas. Posso até virar os olhos num primeiro momento, porém a verdade é que me contagia a ideia de ter o peito cheio de esperanças. Ver todo mundo declarando objetivos, picotando imagens para o quadro dos sonhos, ter o brilho nos olhos diante das páginas em branco do ano novinho em folha.
Tão logo, contudo, acalmo os ânimos. A realidade não demora a bater na porta e me convidar a perambular as esquinas deformadas dos imprevistos, de tudo que escorregou tão fácil das minhas mãos. E olha que suporto pesos pesados.
Enquanto revisava 2023 e planejava 2024, notei o gritante espaço livre para sonhar alto. Mas também me dei conta de que eu não quero viver um sonho. Quero pegar com as mãos a realidade e sentir cada pedacinho do presente. Mesmo que nem sempre seja prazeroso. Parar com o delírio de querer viver inspirada só pelo que me faz suspirar, ou de ter a ilusão que é possível evitar fracassos e tropeços.
Voltei pro balão de ar que me cobre as costas. Porque depois de muito voar, agora quero me apegar ao elefante que toma o lugar da cesta. Veio aí uma necessidade escandalosa de seguir sonhando, mas fincando os pés no chão, mesmo que esse solo esteja roto.
Até poderia argumentar que é uma simples questão de tirar os planos do papel e fazer acontecer, mas é um tanto mais complexo que isso. Cresci tendo medo de manifestar como me sentia com relação ao que me deixava um gosto amargo na boca. A contrariedade, o impulso de mandar à merda ao invés de manter a compostura e agir educadamente. Me ensinaram a prezar pela polidez, pois contrariar o que me era dito ou mesmo partir aos palavrões seria equivalente a se "rebaixar ao nível dos outros".
Só que às vezes precisamos dessa respirada profunda, um grito, e um palavrão desses que a gente articula bem cada sílaba ao pronunciar. Ou um palavrão gritado, tanto faz.
Acabo de terminar a primeira temporada de The Bear. O sétimo episódio é uma reprodução precisa de uma crise de ansiedade. Quando acabou, tive a impressão de ter os batimentos cardíacos acima da média. São pouco mais de 30 minutos de muita gritaria, verdadeira bomba relógio a um passo da explosão. Na sequência, o fim da temporada é marcado por uma ressaca marítima. É fascinante e, ao mesmo tempo, aterrorizam as ondas carregadas.
Ter acesso a mais informações sobre a vida de Carmy me levou a uma viagem sobre motivações. Let it rip, é o que o irmão dele, Mike, costumava lhe dizer com frequência. Ao invés de deixar descansar em paz, nós convertemos rejeições em ódio, até elas se tornarem força motriz. E no fim a incompreensão encontra o encaixe ideal, aninhada no peito.
É no olho do furacão, quando ainda não entendemos muito bem de onde vem a força que não deixa desistir, que nascem as nossas criações mais potentes. Meu intuito nem é de romantizar o sofrimento, mas se tem algo que venho observando mais e mais com o passar do tempo é que não dá para ter vergonha de sofrer. Chorar e reclamar nossas dores, independente do que as causa, é parte do processo. Como é que a gente vai saber curtir os momentos de calmaria se nem se permite extravasar tudo que dói?
O mês iniciou com a energia de uma inocente figurinha que brotou em uma das minhas redes sociais. Um ratinho num carro cor de rosa, seguida do texto The horrors persist, but so do I. Para 2024, eu não quero viver um sonho, tampouco me revoltar com eventuais tempestades. Os horrores não vão parar, a estrada há se de desgastar.
E eu também. Só que agora quero deixar derramar sem medo e rir com esse gosto do ridículo de um meme.
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Resisti por muito tempo, primeiro porque queria ter consistência nas publicações, segundo porque nem tenho tantos assinantes assim. Soava pretensioso oferecer conteúdo extra e cobrar por isso. Deu queimação no estômago todas as vezes em que pensei sobre a possibilidade de explorar a aba de pagamentos do Substack, porém me pareceu o momento certo para ao menos tentar.
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Essa publicação será um apanhado geral de dicas culturais do mês em questão. Indicarei filmes, séries e livros numa pegada de diário, mais ou menos como fazia nos tempos de blog. Embora com foco menor, eventualmente também acrescentarei dicas de restaurantes e exposições na Holanda. Como a maioria dos meus leitores mora no Brasil, a prioridade é focar em cultura geral, por ser algo que podemos acessar de qualquer canto do mundo.
Tá bem, mas e se ninguém assinar a versão paga? Adoro fazer listas e será ótimo revisitar o mês por aqui, construirei um bonito arquivo. E dá para acessar caso você mude de ideia e queira assinar no futuro :)
Vamos continuar esta conversa?
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Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
"Chorar e reclamar nossas dores, independente do que as causa, é parte do processo. Como é que a gente vai saber curtir os momentos de calmaria se nem se permite extravasar tudo que dói?" Olá Lidyanne! Cheguei por acaso no seu texto e confesso que caiu feito uma luva --- cresci com isso do "não se rebaixe" e de que chorar na frente dos outros (sobretudo no trabalho) é sinônimo de fraqueza. Não apenas é uma grande balela como faz mal pra caramba. Ser (e mostrar-se) humano é algo raro e que não podemos fazer por muito tempo neste plano, melhor não guardar nada. Pise com os dois pés bem firme no chão e siga em frente!
Esse ep do The Bear é uma obra de arte que fez/faz despertar sensacoes como se estivéssemos lá! Incrível! Mas meu preferido ainda é o do primo, quando vai estagiar no outro restaurante e descobre que pode ser muito mais. Acho que isso casa bem com o tema da news, sobre seguir sonhando, mas com pé no chão. E no caso do primo, ao som de Taylor Swift!