Ainda recuperava o fôlego após subir cinco andares de uma escada velha e estreita. Larguei a mochila no chão e corri até a única janela do quarto. Apesar do frio, puxei a alavanca para abri-la. Deixei um sorriso escapar ao ver a ponta da Torre Eiffel brincando de farol, espalhando um pouco de luz para felicidade dos turistas (e talvez frustração dos locais). Há um canto reservado no meu coração para esses pequenos indícios que me ajudam a identificar onde estou. Ainda mais quando dialogam com memórias cheias de deslumbre e inocência.
Em tempos de pouco frenesi com celulares e o preço do euro relativamente aceitável, ver aquela estrutura gigante de ferro foi arrebatador. Cresci nas terras vermelhas do Mato Grosso do Sul e era besta demais para problematizar o fato dos europeus se acharem o centro do mundo. Ver tudo aquilo que até então só conhecia dos livros didáticos fazia de mim isca fácil para o encantamento.
Mergulhada na mais pura alienação, estava obcecada por uma Londres que só conhecia dos filmes e das letras de bandas britânicas que enchiam os 32GB do meu iPod. Paris soava-me como um canto de velharias desinteressante perto da modernidade que eu desejava abraçar na capital da Grã-Bretanha. Ai de mim que era deslumbrada.
Ver a torre de perto amoleceu meu coração, que não tardaria a sofrer um abalo sísmico ao adentrar o subsolo da Ópera Garnier. Até então, minha única conexão afetiva com Paris vinha de Antes do Pôr-do-Sol, aquele filme de Richard Linklater onde Julie Delpy e Ethan Hawke batem perna e dialogam muito. Este longa convenceu meu eu adolescente de que era possível entender o amor sem nunca tê-lo vivido, e foi o responsável por atazanar meus amigos para visitar locais por onde os personagens passaram no longa (obrigada, Carol, por sair do conforto quentinho do Bateau-Mouche coberto só para fazer uma foto minha me sentindo a própria Julie Delpy do Paraguay).
A Ópera, contudo, mexeu comigo de um jeito meio inesperado. Foi talvez a natureza do passeio, um improviso sugerido por uma das guias, ou a expressão quase de horror da Pythia de Marcello*, que nos recebe antes de subirmos as suntuosas escadas que aquela série sem sal do streaming de logo vermelho popularizou. Pythia hipnotizou-me e lançou-me numa viagem insana pelos corredores daquele local mítico.
Já tentei diversos exercícios para explicar a explosão provocada por este passeio, sempre sem sucesso. É dessas paixões sem muita explicação. Alguma força estranha da natureza fez com que me sentisse em casa, como se tivesse vivido alguma das minhas vidas naqueles corredores.
Depois daquele episódio, aprendi a falar francês e passei por situações ridículas na capital da França. Fui brega para um caramba. Procurei space invaders pelas paredes, espreitei detalhes escondidos nas ruelas entre um prédio e outro; experimentei os diferentes sabores de macarons da Pierre Hermé até eleger o meu favorito, tomei cerveja nos terraços enquanto criava histórias para os transeuntes, guardei um tanto da cidade em registros fotográficos.
Minha última viagem a Paris foi em 2019, pré-pandemia, e o reencontro na semana passada foi… estranho. O mundo está de ponta cabeça, é sabido, porém, tive a sensação de que quem amargou de vez fui eu. Estou a envelhecer e sentindo a mudança tão mais por dentro do que por fora.
Morando num local onde deslocar-se é muito simples, foi sufocante ver-me espremida entre pessoas que caminham apressadas sem olhar para frente. Mas o mais doloroso foi observar os turistas, um povo supostamente de férias e com uma agenda flexível, abraçando o ritmo mecânico e desesperado dos locais.
Pois bem, a realidade agora é esta. Ninguém quer uma foto para guardar de recordação, ninguém dá a mínima para a tela gigante que cobre uma sala inteira do museu. O importante é garantir que o look está legal e ornando com a pintura ao fundo. Um combo de fotos tiradas às pressas para serem esquecidas mais tarde na ‘nuvem’ já saturada de imagens.
O solo parisiense está coberto de varizes. Danado, desgastado, coberto de tapumes. Ver uma cidade pela metade enquanto é maquiada para receber os Jogos Olímpicos de 2024 provocou-me certo amargor. Foi um reencontro com uma velha amiga onde nos demos uns tapinhas nas costas ao nos darmos conta do quanto envelhecemos.
Estamos em ruínas, sem estrutura para suportar tanta gente, e as gruas espalhadas pelos cantos não parecem suficientes para dar conta da nossa reconstrução.
Não consigo, contudo, reprovar a experiência e ater-me apenas às fraquezas. Enterrei memórias nas catacumbas da cidade e visitá-la no presente é, de certa forma, desterrar lembranças e ver onde elas cabem no presente. Saber que esta mulher de alma surrada ainda vê alguma magia na Torre Eiffel despontando de longe foi prazeroso.
Se brincar ainda não estou tão amarga quanto penso.
*Na verdade, a artista se chamava Adèle d'Affry, mas precisava usar nome de homem para ser levada a sério e poder expor os seus trabalhos. Um clássico atemporal que me enche de desgosto.
Para além dos estrangeirismos
No último domingo tivemos o primeiro encontro do clube do livro do twitter, que foi excelente. Trocamos impressões sobre Os Anos, de Annie Ernaux (sim, a obra que inspirou a última edição da newsletter). Enquanto comentávamos sobre o quanto gostávamos de ler sobre os detalhes mais aleatórios possíveis da vida dos outros, uma das meninas mencionou a resenha de José Gongra para Same Time, Next Year, no Letterboxd. Estou fascinada e pensando nela até agora. Grande resenhista, vamos prestigiar.
Falando sobre o processo de escavação e busca por sentido nas memórias, este episódio de Heavyweight fez-me chorar de soluçar enquanto pedalava de volta para casa depois de uma sessão muito ruim de escalada. É um dos meus podcasts favoritos, e este episódio em particular é triste de doer e ao mesmo tempo lindo. Tem gatilho de suicídio, ouça com precaução.
48 recomendações de leitura pelas rockeiras do meu coração da banda boygenius. Uma ótima lista para quem busca a próxima leitura.
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!
Adorei a news, linda de ler! :)
Agora descobri de onde vieram as novas inscrições no clube do livro 😂
Minha meta é ler todos os livros dessa lista das boygenius!