my hope is a flickering flame
which I’ve found it increasingly hard to explain
Feist, Martyr Moves
A bicicleta enquanto único meio de locomoção me ensinou a prestar atenção em detalhes até então indiferentes a uma pedestre. Com pés que preferem tênis confortáveis a sapatos com salto, andar no asfalto ou em ruas de paralelepípedo é o mesmo. O passo não precisa se adaptar. Requer certo cuidado para não tropeçar somente quando o concreto passa a se deformar pelas raízes de árvores e plantas em expansão. De bike, isso significa cuidado redobrado. Dependendo da forma como o solo se modifica e a velocidade empreendida, as irregularidades podem induzir ao tombo.
Ainda bem que a Holanda é plana.
Este país foi erguido em cima de muita água, portanto é natural que a pavimentação em blocos seja refeita com frequência. A gente se deita para dormir e acorda com a rua tomada por rapazes extirpando o solo e revelando amontoados de areia. Os projetos variam em extensão, podendo durar uma semana ou até meses. Isso acontece a nível nacional. É de praxe refazer o pavimento de tempos em tempos.
Fato é que independente de quantas renovações são necessárias, o “paralelepípedo holandês" é um grande querido. Chamam-no blokje, que traduzo como “bloquinho”. Eles são enfileirados até cobrir o chão. Tanto solo quanto ciclofaixas podem ser asfaltadas ou compostos de blokjes. Pequenas quicadas são comuns quando circulamos na cidade de bicicleta.
Acompanha-se a evolução dos movimentos. O planeta gira, placas tectônicas movem-se, vez ou outra parece milagre que este país ainda exista. São, contudo, as deformações nas ciclofaixas que me chamam atenção.
Árvores crescem, e para isso precisam se fincar mais profundamente no solo. As raízes precisam expandir. Muitas vezes, isso se traduz num percurso desconfortável onde é essencial ficar atento para não quebrar nada do que carregamos na cestinha da bike.
Ser imigrante tem muito dessas cicatrizes formadas no concreto pelas raízes esparramadas. Após certa idade é impossível crescermos em altura como as árvores, porém quer queiramos ou não, estamos em constante transformação. Devemos deixar espaço às raízes para fincarem-se ao solo e dele extraírem nutrientes necessários para em algum momento dar flores.
Para o desgosto de quem trabalhou horas e horas para pavimentar as ruas, esse processo envolve tomar conta também do concreto.
Penso muito nisso, sobretudo agora, seis anos após a mudança ao continente europeu. Virou quase algo ritualístico a fazer-se. A cada 29 de agosto, tiro um momento para refletir sobre o ano passado e avaliar o quanto as raízes cresceram desde então.
Muitos dos autorretratos das primeiras semanas pós partida me mostram descabelada e com os olhos inchados. São registros vagos de 45 dias de choro ininterrupto. Tinha 26 anos e lamentava a escolha do momento: viver na França sozinha e fazer mestrado em francês. Trilhava caminho rumo a uma carreira estável, morava relativamente próxima aos meus pais, e usufruía da efervescência cultural da maior cidade do Brasil ao lado de pessoas que deixavam a rotina ainda mais linda. Ainda assim, escolhi partir.
Deixei uns tantos sonhos para trás e fui atrás de outros tantos. Foi solitário, mas igualmente revelador. Demandou muita paciência e precisei pegar minha mão sem medo de aprender a ser minha melhor amiga. Ou aprendia de vez a amar a única pessoa do meu convívio, ou não aguentaria dar mais passos adiante. Conquistei-me gradualmente enquanto gritava Liability da Lorde, ou ouvia o Blues Funeral de Mark Lanegan no talo nos 50m2 do apartamento ocupado por mim, sozinha, em Montbéliard.
Seis anos mais tarde, as fotos atuais transparecem revoluções internas. Sigo meio maluca das ideias, todavia agora dói menos. Ou aprendi a desapegar de julgamentos e a curtir de outra forma. Encontrei alguém disposto a ser minha família e com ele aprendi a dividir um país novo para ambos. Concluí o mestrado, mudei de área e sinto orgulho demais em ser uma mulher imigrante que trabalha revezando três línguas (duas delas aprendidas já na fase adulta!).
Expandir o significado da palavra pertencimento é uma aventura e tanto, e adoro acolhê-la diariamente. Os desafios mudaram de cara, alguns dias estão longe de arrancarem de mim um sorriso. Quando bate a saudade e a dor fica mais pungente, agarro-me às conquistas.
A vida tão longe de minhas origens fica mais leve cercada de tanta gente especial, visitas, shows, e momentos que só afirmam que a decisão de seis anos atrás foi muito certeira.
Para além dos Estrangeirismos
“Duro está sendo encontrar um lugar para encaixar a minha pressa. Tudo o que estou vivendo aqui me grita: é preciso tempo. Outro dia percebi que a moça do caixa, e devia ser seu primeiro dia de trabalho, anunciou o valor da minha compra trocando a ordem da dezena e da unidade. Em alemão, é invertido. Ela se corrigiu no ato, mas o deslize me revelou alguém que, como eu, também está aprendendo. Alguém que também pensa nas dezenas primeiro, nas unidades depois. Dei um sorriso, entreguei o dinheiro e demonstrei que a entendi, que a entendo demais. Entender os centavos aqui já é muita coisa”. Aproveitando o gancho de não ser daqui, adoro ler a Aline Valek que se descobre na Alemanha. A cartinha mais recente dela bateu forte por aqui.
Já gostava de Feist, mas só me apaixonei de vez quando lançou seu quarto álbum de estúdio, Metals. É desses discos que ouço do início ao fim sem pular nenhuma faixa. Cheguei a comprar o CD em tempos pré-Spotify, concebendo quase um ritual para escutá-lo infitinas vezes sempre que voltava para casa depois do trabalho. Tive a sorte de ver um show dessa turnê no Cine Joia, em São Paulo, que só fortaleceu a conexão com o álbum. Feist no momento divulga seu álbum mais recente, Multitudes, e estou contando os dias para vê-la em Utrecht. O clipe de Of Womankind acabou de sair e só me deixou mais animada para o show.
Ainda no tema musical, aproveito para recomendar a Maíra mais uma vez. Quem mandou ser ótima, não é mesmo? Ela fez um compilado com o que anda ouvindo por esses tempos e as dicas são excelentes. Confira <3
Tive o privilégio de conhecer a Maíra no Clube Margem, que ela mantém com a outra amiga querida, Nara. O clube comemorou um ano no fim de semana passada e sinto orgulho imenso do projeto. Livros são uma excelente companhia, mas poder conversar sobre eles com outras imigrantes é ainda melhor. Elas criaram um substack pro Clube e quem quiser pode acompanhar de longe com as resenhas mensais.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheeeiro e até a próxima!
O privilégio é meu de ter tido a sua participação nos últimos encontros do clube e na nossa festinha. Obrigada pelo duplo compartilhamento. ❤️