Estrangeirismos #28 - No meio da viagem no tempo tinha um coelho esquisito
O encontro de Donnie e Jenna
Tinha alguma resistência em rever filmes. Assim era na adolescência, e pouco mudou depois de adulta. Até que juntei trapinhos com uma pessoa que gosta. Ficar presa numa pandemia algum tempo depois serviu de empurrão. De tanto repetir os dias, a ideia de revisitar as joias da adolescência me apeteceu, e olha só, quem diria, tenho achado a experiência maravilhosa. Alguns desses títulos ainda tenho em DVD, perdidos em caixas na casa dos meus pais. Eles, no entanto, estão a um oceano de distância, e me viro como posso com serviços de streaming. Parte de mim quer muito dar uma chance às novas produções, enquanto outra prefere o conforto de revisitar lugares conhecidos.
Fui igualmente influenciada pelo podcast Segunda Mão, de Jessica Correa e Thiago Guimarães, onde ambos discutem clássicos dos anos 2000. Eles avaliam se as obras em pauta envelheceram bem e se vale a pena ver de novo. Excelente refresco aos nostálgicos. O quinto episódio, que é sobre Donnie Darko (2001, direção de Richard Kelly), me fez correr ao player mais próximo.
Comecei a escrever uma sinopse para explicar do que se trata, mas preferi passar a palavra ao imdb. É um resumo particularmente engraçado:
After narrowly escaping a bizarre accident, a troubled teenager is plagued by visions of a man in a large rabbit suit who manipulates him to commit a series of crimes.
(Após escapar por pouco de um estranho acidente, um adolescente perturbado é afligido por visões de um homem vestido de coelho que o manipula a cometer uma série de crimes) Tradução livre feita por quem vos escreve
Como resumir Donnie Darko sem spoilers?Complexo julgar a natureza do spoiler diante duma baguncinha onde pouca coisa parece fazer sentido, mas a “perturbação” do protagonista é bastante baseada em conceitos de viagem no tempo. Isso torna a escolha de Kelly em ambientar a história no fim dos anos 80 ainda mais interessante. Parece que um breve afastamento do ano de lançamento, 2001, era necessário para incutir a sensação de deslocamento no espaço-tempo também no espectador.
A sequência de abertura ao som de The Killing Moon me deixou arrepiada. Nos primeiros minutos do longa, já deu para sentir que essa seria a minha viagem no tempo, com destino final à minha pré-adolescência.
O protagonista (Jake Gyllenhaal), que dá nome ao filme, toma remédios e faz acompanhamento psicológico. Não sabemos exatamente o diagnóstico, embora haja menção de possível esquizofrenia. Ele carrega em si muita melancolia, mas é um jovem desbocado em idade escolar. Naquele típico cenário de high schools americanas, onde meninos e meninas tidos como esquisitos sofrem bullying e os rapazes ‘descolados’ se sentem os donos do pedaço. Os docentes parecem provenientes de meios conservadores, e reproduzem isso no comportamento escolar. Donnie está cagando para todos eles, e confronta adultos e adolescentes quando julga conveniente.
Conforme a história avança, fica evidente o quanto todo mundo está, de alguma forma, perdido ou angustiado. Em diversas passagens senti vontade de dar um abraço ou um chacoalhão em alguns personagens, esquecendo até de questionar o que raios o cara fantasiado de coelho pretende fazer. Sentir a tristeza desses seres perdidos me impactou a ponto de não parecer relevante questionar se o coelho era real ou mera projeção da cabeça afetada de Donnie.
A tal velha maluca, por sinal, me deixou com o coração apertado na cena em que se aproxima de Donnie e anuncia que todo ser vivo neste planeta morre sozinho.
Quando era adolescente, devo ter falado sobre a genialidade deste filme a todos que me perguntassem, ou o quanto me impressionei com o conceito de viagem no tempo tão carregado em melancolia. Pretensiosa além da conta. Revendo agora, aos 30, quase não abri os olhos ao aspecto de ‘ficção científica’ do negócio. Acabei o longa triste e abatida.
Por mais estranho que Donnie seja, me apeguei e sofri junto. Por mais debochado e nem aí que aparente ser, ele sente demais o quanto o mundo o afeta, e reforça o quanto a transição da adolescência para a vida adulta pode doer. Dói tanto que talvez valha o sacrifício de dar fim à própria vida para não precisar atravessar essa passagem.
Donnie ainda consegue expressar muito do que lhe congestiona o peito, enquanto acompanhamos adultos engolindo o seco e silenciando, muitas vezes, o que poderiam expressar para dar cabo a infinitos pequenos problemas. Dentro do núcleo adulto dá para sentir o quanto conflitos internos não resolvidos se acumulam. A ponto de deixá-los sem alternativas além de dar um grito alto que talvez não resolva nada, mas ajude a aliviar tanta angústia.
Depois de ficar em frangalhos com Donnie Darko, precisava de um pouco de sol. Por algum motivo sem lógica essa história de viajar no tempo sem um mega fundo científico me levou a De Repente 30 (2004, de Gary Winick).
Vamos voltar aos meus primeiros anos de adolescência. Até os 13 assistia filmes por diversão. Tinha preferências, é claro, só o dono da única locadora de Cassilândia sabe a quantidade de fitas VHS com musicais da Disney que devolvi prontamente rebobinadas. Na transição dos 13 aos 14, contudo já morava na capital, onde o acesso à cultura era maior e passei a encarar o cinema com outros olhos. Na época, passei tardes inteiras trocando ideais e referências com os atendentes da finada MB locadora. Era bom demais estudar só pela manhã e ter tempo livre de sobra, inclusive saudades.
Graças a eles assisti a uma porrada de filmes, digamos, conceituais. Era uma fase de descoberta, talvez tenha visto muita coisa que na época me pareceu cabeçuda demais e não entendi nada (oi, Lynch). Porém descobri o trabalho de diretores que encontraram um lugar especial no meu coração e desde então não deixei de acompanhá-los. Foi uma etapa importante, é fato. E se Donnie Darko entrou no hall de preciosidades cinematográficas, De Repente 30 cairia por terra nos critérios de adolescente pedante muito entendida de cinema.
Contudo, encontrava-me em transição, e minha personalidade ainda confusa deixava passar muitos filmes considerados toscos pelos intelectuais. Coincidentemente, o longa foi lançado quando também tinha 13 anos como a protagonista, Jenna (Jennifer Garner), e me achava madura demais para a minha idade. Passava horas confabulando sobre um futuro brilhante como escritora, mentalizando thirty, flirty, and thriving com a mesma veemência de Jenna.
Tantos anos mais tarde, com 30 anos recém-completos, estou bem longe de qualquer prosperidade. Embora tenha encontrado um rapaz muito especial e esteja comprometida, se houve algo que quase não fiz ao longo destas três décadas de existência foi flertar. Quiçá por não ter passado nem perto desta glória pela qual Jenna tanto aspirava, me pareceu simbólico pegar o filme para rever agora, batendo na porta dos 30.
Ouso dizer: De repente 30 é uma explosão de amorzinho e felicidade se colocado ao lado de Donnie Darko. Porém Jenna precisa passar por um purgatório semelhante ao de Donnie durante o colégio. No alto dos meus vinte e tantos, agora consigo olhar e achar ridículo esse esforço débil que muitas pessoas como eu empreendiam para fazer parte de algo com o qual, na maior parte do tempo, tampouco nos identificávamos.
Algo em minha mente dizia que se eu me desse bem e, com alguma sorte, fizesse parte do grupo das meninas populares, ganharia uma proteção automática anti-julgamentos. Ignorando por completo o fato de que eu não tinha cacife para arcar com a realidade daquelas moças. Era branca desbotada feito um palmito como elas, um senhor privilégio. Porém não tinha cabelos lisos, era rechonchuda, não gostava de fazer as unhas, andava com roupas largadas (uma taurina apaixonada pelo conforto desde os primórdios) e não me sentia nada pronta para FLERTAR. Preferia esconder meu rosto atrás de um livro a encarar todos os possíveis julgamentos e testes sociais aos quais seria colocada a prova.
Jenna também queria ser popular e acolhida, e achava um rapaz bonito só porque enfiaram em sua cabeça que ele era charmoso. Por não alcançar este patamar e de tanto se esforçar sem sucesso algum, seu escape passa a ser o sonho de ser adulta. Com 30 anos, sedutora e próspera. Tudo isso para viajar no tempo, desembarcar nos 30 e perceber o quanto as nuvens carregadas de tempestade encontram seu caminho dos 13 aos 30 sem muito esforço. Os tão sonhados 30 anos carregam suas dores e nem tudo são flores como a inocente mente imaginativa de Jenna esperava.
Impossível ignorar o fator comédia romântica da trama. Ela gira em torno da ideia de valorizar os pormenores de cada etapa das nossas vidas. De não tentar acelerar os processos e nunca fechar os olhos para quem te demonstrar afeto em detrimento a um mero desejo de validação social. O final é feliz e ensolarado, diferente de Donnie Darko, mas esses tapas na cara da vida adulta doeram com mais força agora que me vejo na outra extremidade do título do filme.
Ser adulto significa assumir um amontoado de responsabilidades, quando lá no fundo nós só queríamos sentar num cantinho e pedir para alguém resolver as coisas por nós. E este foi de longe o fator que mais mexeu comigo ao rever o filme. Embora não viaje no tempo, às vezes tenho a sensação de ter dormido com treze anos e acordado no meu corpo com trinta.
Sabe quando você assina um documento importante ou assume um novo cargo na empresa? E bate aquela sensação de “como é que fui parar aqui, eu só tenho 13 anos”? Pois então.
Sempre me emociono ao ouvir Vienna, de Billy Joel, e sem nenhuma surpresa chorei copiosamente com a sequência do filme, da qual já nem me lembrava mais. Slow down you crazy child, you’re so ambitious for a juvenile. But then if you’re so smart tell me, why are you still so afraid? A letra inteira é aquele empurrão delicado que nos faz mandar o pé no freio e repensar o ritmo frenético no qual nos colocamos, em uma tentativa por vezes difícil demais de deixar certos processos se darem no seu tempo.
Com trinta anos recém-completos, enfim tomei consciência deste fato, e minha meta é colocá-lo em prática. Afinal, é normal sentir medo de tomar decisões importantes e fazer as coisas por nossa conta. Posso dizer por experiência própria: mesmo quando era uma pessoa fitness, era difícil levantar peso sem técnica, sozinha. Completar um número x de repetições sem fazer careta? Impossível. Dói mesmo, e carregar estes pesos da vida adulta é natural. Só não pode se transformar em um freio que nos impede de avançar.
Meu reencontro com Jenna e Donnie foi um lembrete sobre a importância de respeitar – e muitas vezes desacelerar – o processo. E dar mais espaço às emoções. Pois sentir é um negócio ridículo mesmo, e a gente precisa se expor a esses papelões para conseguir se ouvir melhor. Conquistar nossos jovens interiores, fazer as pazes para criar uma estrutura resistente, forte, que usa a própria vulnerabilidade para crescer e nos tornarmos adultos funcionais.
E não muito perturbados, diga-se de passagem.
Publiquei esse texto originalmente em 17 de maio de 2021. Dei uma polida ao invés de editar, se deletasse alguns detalhes tiraria o contexto da pandemia. Olhando em retrospecto, hoje posso citar o incentivo extra do Kino, meu cinema do coração (já falei dele em outras edições). Eles realizam sessões com cópias restauradas de filmes antigos e a sensação de poder conferi-los na telona é boa demais. Na inauguração de uma das novas salas eles exibiram O Grande Lebowski, antecedido de trailer de filmes lançados no mesmo período. Meu tipo de experiência imersiva.
Resgatei e reciclei esse post depois de ler essa cartinha da Bárbara e porque dialoga, em certa medida, com a próxima edição. De maneira 100% desproposital preenchi o cotidiano com obras coming-of-age. Já gostava, é claro, mas adoro a coincidência de não ler a sinopse antes e do nada perceber o fio invisível conectando títulos que me pareciam tão distintos a princípio.
Encarei igualmente um senhor desafio ao ter a ideia de reciclar escritos passados. Depois de ler Bárbara busquei empolgada os arquivos de meu finado blog, li achando tudo muito fofo e quase cometi um ctrl+c, ctrl+v. Na segunda leitura me pareceu horroroso, e após a décima quinta leitura não me parecia tão mal assim.
Apesar da distância curta entre a primeira publicação dele, houve certo impacto no reencontro com essa versão quase três anos mais nova. A gente cresce tanto sem se dar conta…
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Eu adorei esse resgate de textos antigos. Ontem, por coincidência, também estava olhando minha conta no Medium onde eu postava alguns textos durante a pandemia. Olhando agora, três anos depois, que fui perceber como a gente muda em um espaço de tempo tão curto. Tem uma frase do filme do Cazuza que eu ouvi uma vez e nunca mais esqueci. Ela dialoga muito bem com Vienna: o tempo não pára e a gente ainda passa correndo.
Desacelerar é importante e acaba sendo um exercício diário em um mundo que sempre dá um esbarrão nas nossas costas transformando a nossa caminhada em corrida. Mas continuamos tentando.
Adorei o seu texto e fiquei com vontade de rever Donnie Darko (pela trocentésima vez).
Adorei a sua perspectiva sobre De repente 30, Lidyanne! E acho que eu nunca pensaria em conectar ele com Donnie Darko, mas faz todo sentido haha amei