(A Substância, segundo longa-metragem de Coralie Fargeat, é o tema desta edição. O texto pode conter algumas descrições gráficas e aborda transtornos alimentares e de imagem, portanto leia com cuidado, ou considere pular a leitura caso esses temas sejam sensíveis para ti. Não revelo nada sobre o desfecho do filme, mas sim, você pode encontrar alguns spoilers)
Reagiria com desprezo e lábios crispados caso perguntassem minha opinião sobre filmes de terror no passado. Tinha medrosa colada ao meu sobrenome, pavor de fantasmas, tomar sustos, e de explosões sanguinolentas na tela. Abri exceções nos últimos anos, não sem antes pedir avaliação prévia de amigos, e eventuais mãos na frente dos olhos durante as projeções. Para minha surpresa, quando dei por mim era a mais nova obcecada por body horror. Tomou-me a cabeça ao ponto de ter a viagem insana de A Substância, de Coralie Fargeat, ocupando uma sessão inteira de terapia.
Tardei a descobrir que o corpo é uma festa. Ouvi dizer algumas vezes que ele fica mais preguiçoso depois dos 30, pois o meu deve ter entendido como provocação. Cada anilha mais pesada na barra de agachamento, ou aguentar mais de uma repetição com pesos maiores na remada era um marco, sentia-me ridiculamente forte. Esse corpo bruto, supostamente indisposto de viver e desgastado pelo tempo, aguentou subir e descer os 2351 metros de altitude da Tournette. Imagine só.
Contudo, tal vagaroso acordo de paz só viria mesmo quando ajudei amigos a se mudarem no fim do ano passado. Após um dia inteiro subindo e descendo escadas com caixas pesadas, estava exausta. Capotei, mas acordei inteira. Pelo visto os meses levantando peso na academia serviram para algo. A lombar seguia intacta.
Este mesmo corpo que tanto me pega nos nervos quando o zíper do vestido não fecha. Que amo odiar quando passo sete dias de férias comendo entrada, prato principal e sobremesa no almoço e na janta, sabendo que lamentarei pelos exageros depois. Como é possível um físico que me permite tantas satisfações provocar frustrações tão dolorosas?
Suspeito do desmesurável hábito da mídia de tentar estabelecer a imagem do corpo ideal. Antes, tinha revistas recheadas de dietas para perder 10kg em duas semanas. Figuras públicas cada vez mais secas estampavam as capas, que hoje substituímos fácil pelos corpos cheios de intervenções clínicas das redes sociais.
Não basta usar 36 e almejar pelo 34. As telas gritam. Temos que comprar o creme que ajuda a eliminar manchas no rosto, dormir pelo menos 8h todos os dias e madrugar às cinco para conseguir se exercitar antes de mergulhar em obrigações. Bombardeadas pelo ‘shape’ musculoso onde nada treme, nem todo mundo é desprendido o suficiente para não se importar.
Elisabeth Sparkle (Demi Moore) se consagrou ao longo de anos como instrutora de dança de um programa televisivo. Os anos de sucesso entram em cena como ‘flashes’, recortes breves. Nosso primeiro encontro com ela se dá no fim da gravação de mais um episódio, que coincide com o aniversário de 50 anos da personagem. Enquanto espectadora, vi uma mulher linda, disposta. Que me fez pensar no quanto gostaria de chegar aos 50 com a mesma energia.
Na data, entretanto, é dispensada no almoço com seu produtor, Harvey (Dennis Quaid), que justifica a decisão argumentando que as pessoas sempre pedem algo novo, é inevitável. Aos 50, bem… isso acaba. Já ouvimos esse discurso antes, e sabemos que nomear o personagem Harvey não foi acidental.
Ao indagar o que acaba, Elisabeth nunca obtém resposta. Sensação que passa a rodeá-la. Algo do brilho de outrora perdeu o viço. Ela encara a imagem no espelho e questiona o valor da pele marcada por traços de tantas décadas exposta aos holofotes, que agora só se interessam por pelo frescor da juventude.
A vulnerabilidade de se enxergar velha e descartável está perto de engoli-la, quando surge a substância do título. A proposta é tentadora — o produto promete tirar da pessoa interessada uma versão “mais jovem, mais bonita, mais perfeita”. Embora o pacote pareça suspeito, Sparkle arrisca. Como num parto, as costas de Elisabeth dão à luz essa versão mais jovem, que decide nomear Sue (Margaret Qualley).
Como qualquer cosmético promissor, o elixir da juventude carrega seu preço, pois requere troca obrigatória a cada sete dias. É uma semana de Sue para uma semana de Elisabeth. Ao longo dos sete dias na carne da sua versão perfeita, Sue deve aplicar doses diários de um estabilizador, que é nada mais que o fluido retirado da espinha dorsal de Elisabeth.
Métodos de beleza e suas bizarrices.
O último lembrete amigável sinaliza “A única coisa a não se esquecer: vocês são um só. Você não pode escapar de você mesma”.
A mensagem ecoa em leve proporção, pois Sue costura as costas da versão imperfeita com nojo, mas cuidadosamente. Dali adiante não perde tempo e vai atrás de colher os frutos desta nova oportunidade, garantindo o posto da nova instrutora de dança que substitui Elisabeth.
Críticas à indústria são gritantes. A obsessão pela imagem impecável explode feito sangue nas telas, assim como a efemeridade do gosto público, e a submissão a intervenções estéticas duvidosas. Nada melhor do que escalar Demi Moore para o papel. Ela também, vítima das crueldades de Hollywood. Um dia foi brilhante, escalada para diversos papéis, até desaparecer do mapa e ter sua imagem pública despedaçada, assim como a estrela da fama de Elisabeth Sparkle na sequência de abertura do longa.
A engenhosidade de Fargeat está na abordagem do existir pelo corpo, que transpõe o universo hollywoodiano. Entrar por vezes no ringue com o que enxergamos no espelho é uma experiência feminina universal. Seja pelas formas do corpo ou nos traços que marcam a pele conforme a idade avança, somos confrontadas pela imagem de modo bem mais incisivo que os homens.
Pela primeira vez em muito tempo as cenas de nudez não me incomodaram. A câmera de Fargeat simula o nosso próprio olhar diante do espelho em momentos de fúrias ou de encanto. A expressão embasbacada de Sue ao ver o reflexo pela primeira vez é também nossa. Essa visão da diretora é um convite para olharmos para dentro.
No longa, Sue explode em popularidade. Conciliar os sete dias de pausa diante da agenda cada vez mais cheia fica difícil, e ela se decide por uma pequena escorregada, aplicando dose extra do estabilizador. Ao efetuar a troca, Elisabeth é surpreendida por um dos dedos da mão enrugado, com a pele mais envelhecida do que nos outros dedos.
Elisabeth descobre que os danos são irreversíveis. Na sala escura lotada, dava para ouvir as reações do público. Ninguém achava que Sue abusaria da substância outra vez. A diretora mais uma vez dá aquela cutucada. Você, espectador, também não cairia na tentação? É fácil esquecer que aqueles dois corpos são a mesma pessoa, que precisam se entender enquanto unidade.
Poder reviver os anos de glória da sua trajetória profissional é um delírio. Sedutora a ideia de cair nas garras da segunda chance, sobretudo quando é difícil enxergar o quanto ela está te destruindo. De dentro para fora. Como Nick Cave canta em Balcony Man, ”what doesn’t kill you just makes you crazier”.
Aqui o conceito de autodestruição se expande. Elisabeth apela ao comer compulsivo numa tentativa de vingança, visto que Sue não parece ter muita consideração por sua versão mais velha. Doeu acompanhar essas sequências, as provocações começaram a chafurdar com mais força.
Já usei bebida de combustível para conseguir socializar, comi fritura com a gastrite atacada sabendo que passaria mal no dia seguinte. Devorei frustrações sem nem sentir o gosto da comida. Pulei refeições para tentar entrar em vestidos que não me cabem mais. Investi em produtos que prometiam milagres.
Não há tempo ou disposição para ajudas externas. Se você não se entende com os efeitos do tempo e aprende a viver em harmonia com a própria carne, uma hora ela vai te cobrar. Quanto mais cedemos, mais o capitalismo encontra brechas para nos levar a buscar meios de atingir uma versão mais perfeita, assim como Elisabeth.
Passei o trajeto de volta para casa, após a sessão, pensando nos meus pequenos flagelos e tentando construir algum senso crítico. Enxergando nós, seres humanos, como autores da nossa própria desgraça. Autodestruição é um baita negócio estranho. Ferir-se, independente da forma e da frequência, pode ser tentativa de fuga. Ou grito de socorro.
A Elisabeth Sparkle de Coralie Fargeat doa o corpo, literalmente, para fazer uma alerta. Leva o conceito de metamorfose ambulante ao extremo. Expõe-se em cenas nojentas e aflitivas pelo prazer de nos provocar.
Talvez seja esse o incômodo. Aceitar que às vezes precisamos de apelo visual, doses cavalares de body horror, para deixar nascer alguma esperança. Fechar os olhos para abri-los com mais coragem e repensar o movimento de se deixar levar tão fácil pelos discursos expostos na mídia e, sobretudo, nas redes sociais.
Do outro lado da tela, pensei em como meu corpo, o da minha mãe, e da minha avó se modificaram ao longo dos anos. E isso se dá para acomodar nossas vivências. Por isso a destruição de dentro para fora é irreversível. Tentar lutar contra as ações do tempo é infrutífero, não vale o desgaste físico.
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Um cheeeiro e até a próxima!
Uau!Trabalho com pacientes que tem transtorno alimentar ou comer transtornado e fiquei curiosa pra ver! Obrigada, que texto!! Um abraço!!
Lidy, obrigada pelo olhar sensível. Confesso que não sei se terei coragem para assistir ao filme, mas fiquei pensando no quanto somos (eu, ao menos) críticas com nosso corpo que tem o mais importante: saúde. E quantas meninas, tão jovens e tão belas na sua autenticidade se expõe a substâncias perigosíssimas por conta de.....uma foto no Instagram?