[Edição #61]
No meu começo de ano, li Três, de Valérie Perrin. Nina, uma das protagonistas da história, encontra o príncipe sob o cavalo branco aos 18 anos. Pouco tempo após se conhecerem, ela perde a pessoa que a criou. Naquele momento de luto e vulnerabilidade, seus melhores amigos, Adrien e Étienne, organizam os últimos detalhes para começarem estudos universitários em Paris. Nina deveria ir junto, mas decide adiar os planos de deixar La Comelle para se casar com o príncipe encantado, Emmanuel.
No contexto da história, encontrar um grande amor era um desejo adolescente repetido por ela à exaustão. Os amigos até desconfiam deste relacionamento relâmpago. Na ausência da única figura familiar, contudo, Nina enxerga no casamento a salvação para dias solitários.
Emmanuel, por sua vez, dá indícios do quanto poder ser ciumento e possessivo, mas nossa jovem está cega de amores. Ao ponto de não saber muito para onde correr quando percebe que ele é, na real, um crápula. Passaria horas argumentando contra os recursos narrativos baratos, mas coincidências deste teor acontecem com mais frequência que gostaria.
Se você nunca se humilhou por homem, ou aceitou migalhas de um cara muito querido, meus parabéns. Tiro o chapéu. Tinha vinte e poucos anos nas costas e uma boca que só usava para falar e comer há quase três anos. Sentia falta de toque humano, de dar uns pegas sem ponderar envolvimento emocional. Surgiu uma oportunidade e mergulhei de cabeça no sexo por carência.
Permiti que os encontros se repetissem por um tempo, embora soubesse que era uma via sem saída. Quando pessoas próximas se preocuparam, argumentei que ao menos essa pessoa queria me pegar! Veja bem. Ou é isso, ou fico triste na seca porque ninguém me quer. Tenho vontade de fazer como um avestruz e enfiar a cara num buraco enquanto jogo essas palavras num espaço público.
Ao passo que a confissão me envergonha, contudo, também me ajuda a respirar aliviada. Enxergo o meu amadurecimento, sinto paz em ter aprendido a me priorizar e saber a hora de cair fora quando percebo envolvimento emocional. Esse aprendizado serviria inclusive para amizades e também no âmbito profissional algum tempo mais tarde.
Relato algo pessoal que vejo com outras palavras na ficção para frisar o quanto o ser humano cede a impulsos por insegurança. Autoestima frágil é prato cheio para ser feita de besta e sim, parece até que há gente à espreita só esperando para te encontrar e se aproveitar desta fragilidade. Na maior parte do tempo pouco adiantam tentativas de alerta, estar num ciclo de abuso bagunça toda a capacidade de agir com lucidez.
Inocente, pensei e proferi que cair em relações abusivas, independente do contexto, acontecia muito por imaturidade. E é verdade. Mas não significa que pessoas mais velhas estejam protegidas e calejadas o suficiente para se blindar de abusos emocionais e físicos.
No livro de Perrin, Emmanuel apaga Nina. Debocha da aptidão dela para o desenho, revira os olhos quando ela insiste que um bicho de estimação traria alegria para casa. Ela, que cresceu numa casa com cachorros e gatos resgatados. Começa pelas bordas, a partir de características que parecem bobagens. Mas se partimos a uma análise mais profunda, entendemos que são características de fundação. A essência de Nina.
Ela nem percebe o quanto o marido arquiteta o afastamento de si mesma. Não satisfeito em tirar de Nina as coisas que lhe traziam felicidade, enche-a de cobranças desprezíveis como a obrigação de ter um filho que ela não quer, e se empenha em afastá-la de Adrien e Étienne.
Já acompanhei variações do mesmo tema mais vezes do que gostaria, vindo de amigas e de relatos que ouvi de terceiros. Xinguei a personagem nas primeiras passagens, questionando como poderia ser tão tonta. Apagando da memória a sabedoria universal de que só quem está enfiada numa lama tóxica sabe dimensionar a própria dor.
O inferno da dependência emocional, esse buraco sem fundo que deixa tanta gente sem chão. Esfola sem dó, causa o tipo de ferida aberta cultivada de pouco em pouco. Arrancamos a casquinha para depois perguntar por que não sara.
A categoria de machucado que, caso cicatrize, deixa marcas feias demais para caírem no esquecimento.
Entre dezembro e janeiro, tive o desgosto de ler (e ouvir) denúncias de abuso físico e psicológico contra mulheres. No exterior, no Brasil. Pessoas que admirei por muito tempo, autores de obras que aplaudi e recomendei. Quando uma história de relacionamento abusivo cai na boca do público, cria-se um ringue público de bonzinhos contra maldosos.
Tão logo, aparece alguém com os medidores de dor e veracidade.
Sobra espaço para questionar a dor e o posicionamento de mulheres no cerco de dicotomias. Homens dão as mãos, encontram modos de se proteger e se amparar entre eles. As mulheres da história saem ou como histéricas, exageradas. Vira um circo.
Quem ganha os holofotes é a invalidação da dor das mulheres. Não falta quem questione se de fato aconteceu, o porquê de tanto estardalhaço. Quando deveríamos, sim, fazer barulho e gritar até as feridas cicatrizarem. Mesmo que demore, mesmo que envolva repetir a mesma história por anos a fio e resgatá-la quando as pessoas julgam ‘tarde demais’ ou ‘desnecessário’.
O que mais me frustra nestes casos, contudo, é nossa falta de união. Fecho abas e já não me interessa saber o desdobramento de nenhuma dessas histórias. Tento me desligar por uns dias ao passo que sonho com o dia em que, ao invés de querer jogar outra mulher no ringue, a gente aprenda a oferecer colo uma a outra.
Em 2017, Jesse Lacey, vocalista da banda Brand New, foi acusado de exploração sexual. Embarquei na decepção de fã e em histórias de pessoas próximas para escrever uma carta sobre abuso na minha antiga newsletter. Dá para ler o texto aqui. Outros tempos, outras dores, muita água correu desde então, mas essa edição me aproximou de pessoas queridas. Na época, até ajudou uma amiga a buscar ajuda.
Li outros textos em torno do tema de abuso psicológico e sexual de vizinhas de casa, e compartilho abaixo para continuarmos a refletir em conjunto. Mulher nenhuma deveria ser silenciada, tampouco se sentir insegura em expor um abusador. Espero que os textos abaixo nos ajudem a prolongar a prosa e pensar o assunto com mais carinho.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega. Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores.
Não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último dia de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro, e até a próxima!
Quem de nós nunca foi Nina? Eu com certeza já.
Ontem terminei de ler outro livro sobre abuso e apagamento da identidade de mulheres, incluindo pedofilia, o que só deixa tudo ainda mais terrível. Se chama "Minha sombria Vanessa", acho que você poderia achar interessante.
Que texto importante! Passei por assedio moral no trabalho, somado a retaliações e perseguições que resultaram em um burnout com afastamento de 120 dias e a decisão de pedir demissão e tirar um tempo para mim! (puta privilégio, eu sei!). Transformei tudo em texto e fotografias numa exposição online pessoal, ajudou muito a ir secando a ferida, mas volta e meia, de alguma forma, eu arranco uma casquinha. Obrigada por esse relato e te mando um abraço afetuoso!