[Edição #36]
No trem, voltando de mais uma sessão de cinema. Topei um bate e volta até Amsterdam numa manhã de domingo friorenta para me aquecer com um pouco de brasilidade. O escolhido em questão é encantador aos olhos de uma brasileira saudosa de suas origens deixadas para trás. Em Retratos Fantasmas (2023), Kleber Mendonça Filho nos conta sua relação com o cinema enquanto espaço físico.
A história da casa onde ele cresceu serve de convite de entrada. As vidas que percorreram aqueles corredores se entrelaçam com as primeiras aventuras cinematográficas de Kleber. Nenhum espaço é desperdiçado e, independente do que aquele espaço venha a ser um dia, agora temos um registro atemporal em filme de uma parcela de tudo que esse lar teve a contar.
Dado esse pontapé inicial, ele caminha até o centro de Recife para falar da sua relação com os cinemas da cidade. Os ditos cinemas de rua desapareceram no Recife, assim como tantos outros Brasil afora. Fiquei nostálgica do que nem vivi enquanto pensava nesses locais místicos que nos permitem ir tão longe. Numa escala reduzida, viajei rumo aos meus dois anos regados de Reserva Cultural, Cine Bombril e Belas Artes em São Paulo. Perdi as contas dos sorteios que ganhei no Catraca Livre e, mais tarde, das cabines de imprensa da época em que brincava de ser crítica.
Curioso enxergar o Recife de Kleber um tanto como a Campo Grande ou a Goiânia onde cresci. As nossas cidades são todas meio iguais. Construções com pinturas desgastadas, portões, grades, e muros cada vez mais altos, grandes como os prédios ambiciosos por rasgar o céu. Mesmo em cidades pequenas que não precisariam de tantas camadas sobrepostas assim. Há também os mesmos fios de eletricidade atrapalhando a vista, o piso de ladrilho marrom e os cachorros da vizinhança que latem, impedindo ladrões de tentarem invadir as casas.
Me fez pensar demorado na facilidade com a qual brasileiros massacram memórias para dar lugar a espaços desprovidos de alma. Esse desespero latente em abrigar mais gente e terminar criando cenários a se perder de vista com tantos prédios. Sorte a nossa por termos cineastas como Kleber, que não apenas fez os seus próprios registros como ajudou a manter vivos os extratos de filmagens e fotos alheias que sobreviveram ao desgaste do tempo.
Muito está impresso nas imagens, mas o diretor me ganhou de vez ao fazer poesia através dos letreiros que anunciam os filmes. Por descuido ou distração, muitos enredos se criavam ao combinar os títulos em exibição. Saí da sala com saudade longa do meu Brasil.
Trocar horas extras de sono num domingo para ir ao cinema diz muito sobre minha arte de procrastinação personalidade. E tem muito a ver com a experiência que tive ao assistir Le Livre des Solutions (O livro das soluções, 2023), produção mais recente de Michel Gondry, alguns dias mais tarde.
Na sequência de abertura, o protagonista, Marc (Pierre Niney), entre em desacordo com as decisões dos produtores de seu mais recente filme. Num impulso, ele foge para a região de Cévennes, na casa de sua tia Denise (Françoise Lebrun, que me deixou em lágrimas) com parte da equipe do filme. Além de cineasta, ele é bipolar, adicionando aquela camada de complexidade nas problematizações cotidianas do personagem.
Como bom artista, vive altos e baixos da criação. Por vezes caímos de amores por parte do processo, mas por vezes nadamos em frustrações. Dias de luta, dias de glória. É sobretudo nesse ponto que Gondry se concentra. Explorar um pouco dessa loucura que é ver ideias nascerem grandiosas nas nossas mentes, mas aparecerem completamente deformadas quando tentamos dar-lhes um corpo.
Marc começa, então, a redigir o livro das soluções, cujo intuito é criar uma guia de conselhos práticos que vão ajudá-lo a solucionar todos os seus problemas. Por vezes ele até parece estar fugindo do problema inicial, que é a produção do filme, para procrastinar afundado num projeto literário. Mas é pior que isso. A mente criativa e bipolar de Marc não lhe dá uma pausa sequer. As ideias por vezes surgem no meio da madrugada, e a inspiração nasce de um pensamento absurdo e impossível.
Ri e chorei na mesma medida porque dá aflição observar Marc desesperado em atingir um objetivo que parece desconhecer enquanto enlouquece os colegas de trabalho. Denise me fez chorar porque ela não se deixa abalar em nenhum momento e está sempre ao lado do sobrinho, apoiando e incentivando qualquer maluquice que lhe venha à mente.
Ter um pé na arte é uma alegria ao passo que também me tortura. A escrita é um extra, atividade que executo em paralelo à profissão que me garante um salário. Está longe de ser meu ganha-pão. Contudo, sempre figurou como um dos meus melhores apoios. Para mim, é uma das melhores ferramentas para dialogar com meus conflitos internos e dar tempo para decantar os acontecimentos da vida.
Isso se dá, todavia, num contexto de pura informalidade. Manter diários não me exige o menor esforço. Abro o caderno, despejo um amontoado de garranchos, e sigo a vida. O problema vem na hora de escrever uma crônica, ensaio, crítica, ou, para piorar, um conto ou romance. Esses formatos demandam estrutura e edição, independente do objetivo final. O processo criativo não traz o mesmo alívio de desabafar em folhas de papel, e é por essas e outras que encontrei estratégias ao longo dos anos para não desistir dos textos devido a bloqueios criativos. Com o tempo desapeguei do editar ao passo que escreve. Deixo os textos descansarem até aparecer o desejo de lapidá-los.
No refinamento dessas estratégias, notei um padrão de procrastinação que hoje é um dos meus maiores paradoxos. Consigo encher a cara de cultura, em doses cavalares, sem limites, para depois usar a ressaca como desculpa para não produzir nada. Engatar três filmes num único dia, encaixar um show em Amsterdam depois do expediente, ler por quatro horas seguidas; são todas atividades que executo sem fazer careta. Depois fico lamentando pelos cantos porque não sobrou mais tempo para preparar uma edição de Estrangeirismos com calma, ou avançar na escrita do meu romance.
O paradoxo nesse oceano de caos é que não só essas coisas todas fazem parte de quem sou, mas ainda são o tanque de oxigênio que me permite mergulhos mais profundos. Impossível saber de antemão, mas no meio de tantas expedições culturais encontro inspirações, assim mesmo, no plural. Mantive o hábito dos tempos de jornalista que consiste em ter sempre um caderno por perto, pra não deixar nenhuma ideia escapar. Tomo noto no escuro do cinema, no meio de um show, onde for. A cultura me serve de distração, porém me enche de referências.
Enquanto assistia Retratos Fantasmas gastei um momento pensando se dá para equilibrar a minha capacidade produtiva e o consumo cotidiano de cultura. O desgraçamento mental teve força suficiente para me acompanhar até o começo de 2024. Será que estou seguindo os passos de Marc a tentar criar um livro de soluções enquanto na real não paro de compor o livro da procrastinação?
Viver tranquilamente
Sentir água no pé
Não preciso ir à Copacabana
Levo minha mente onde eu quiser
Aluno eu sou da vida
Todo dia passa uns trem que eu perdi
Todas as viagens são só de partida
Criei a tradição de dar play no shuffle no primeiro dia do ano para ouvir o que o Spotify me sugere para começar o ano. Dessa vez ele me mandou uma música da qual nem me lembrava mais, que provavelmente curti ouvindo algum Descobertas da Semana e nunca mais revisitei.
Chama-se Copacabana e é da banda Jovem Dionísio. Tô com esse “todas as viagens são só de partida” caminhando incansável na minha mente desde então.
Para além dos Estrangeirismos
Minhas amigas Maíra e Luisa não se conhecem (até onde sei) e a coincidência boa da vez é que ambas publicaram cartinhas sobre audiolivros. Estão ótimas, e são minha dica de leitura de hoje para abrir 2024 cheeios de dicas boas.
Caso ainda não tenha conferido, dê uma olhada nos meus favoritos de 2023 também. Tá cheio de recomendação bacana!
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro, boas festas e até 2024!
o desapego pela edição até que tenho, o difícil pra mim é estruturar coisas maiores do que um conto miúdinho. Até pra escrever uma noveleta me parece algo inimaginável e como eu sofro pra escrever na newsletter, por isso resolvi escrever as coisas no meu tempo, mas queria ser um pouco mais objetivo e que as coisas não existissem apenas depois de muito vai e vem
Alimentar-se de cultura que seja fomento da nossa arte e ao mesmo tempo usar isso como fuga para criar. Esse é um caminho complexo que por vezes me encontro também, inclusive, acabo usando a arte alheia como um "desmerecer" da minha, causando o efeito oposto de inspiração. Enfim, assunto longo né....