[Edição #35]
Até esse ponto, 2023 aconteceu quase na surdina. Silencioso, acanhado. Demandou de mim coragem todos os dias, embora tenha me faltado energia para assumir o tranco. Virou uma sequência de "só mais uma semana e já estaremos em fevereiro", seguida por "mais um pouco e já vai ser maio", até tropeçar e dar de cara com dezembro. Olhando em retrospecto, tenho a impressão de que nada aconteceu no segundo semestre de 2023.
Pois a vida acontece justamente nesses tropeços. Precisei impor pausa(s) e dedicar tempo a repensar questões. Dar espaço para entender que nas águas tranquilas aprendemos a apreciar a serenidade e melhor negociar estratégias para lidar com o caos. No último trimestre de 2023 transbordei limites pessoais e tive que parar na marra para reaprender a descansar.
Mais uma vez, foi a arte quem pegou na minha mão e me guiou em meio a tanta confusão. Na carta de hoje, destaco os livros, filmes e shows que mais me marcaram nesses doze meses. Para facilitar a empreitada, não vou repetir comentários detalhados sobre os favoritos do primeiro semestre. Falei deles na edição #25.
Seguindo a linha de retrospectiva, aproveito a deixa para repassar pontos importantes do meu 2023 ao passo que compartilho os livros, shows e filmes mais emblemáticos do ano.
Últimos suspiros de verão (Julho, Agosto, Setembro)
A Holanda abandonou mais uma vez a ideia de verão. Para nossa sorte, ainda tínhamos o último casamento (dos três para os quais fomos convidados em 2023) do ano na Itália. Levei a sério a empreitada de sentir a roupa colando no corpo de tanto calor enquanto conhecia Pompei e me apaixonava por Ravello. Durante a viagem, encerrei a leitura de Peitos e Ovos, de Mieko Kawakami, que me revirou e despertou um punhado de questionamentos.
Após quase 12 tentativas frustradas de ir aos encontros do Clube Margem, estava determinada a participar desta vez. O livro de Mieko era o escolhido do mês, e coincidiu em ser uma obra recheada de possibilidades para debate. Gosto mais da primeira parte e adoraria ter mais acesso aos pensamentos da sobrinha da protagonista. Há passagens um pouco arrastadas, mas me encantei com a escrita crua e as provocações que pipocavam conforme a leitura avançada.
"Não dizer nada não era uma opção. As pessoas não estão interessadas em folhas em branco. Querem saber do seu passado para tentar prever o futuro. Eu não as condeno."
Diorama, de Carol Bensimon
O segundo favorito do trimestre foi Diorama, de Carol Bensimon (que também tem uma newsletter incrível no Substack). Já não lia nada de Carol há tempos e foi um reencontro e tanto. Um dos meus aspectos favoritos nas obras dela são as referências musicais e as descrições, que de tão ricas me dão a sensação de estar com os personagens diante dos meus olhos. Enquanto lia, tinha a impressão de sentir até os cheiros. Como nesta passagem: "Para mim, aquelas viagens tinham o cheiro de cigarro Minister e o som cheio de estática das milongas e dos chamamés".
O verão ausente também me levou aos poucos de volta aos cinemas. Amei participar do evento que foi Barbieheimer, embora não tenha gostado tanto assim de Oppenheimer. Barbie, por sua vez, ganhou uma edição de Estrangeirismos. Mas os queridinhos do trimestre só chegariam até mim em Setembro: Past Lives, de Celine Song, e Anatomy of a Fall, de Justine Triet. O primeiro também mereceu textão por aqui.
Justine Triet, todavia, me deixou com ressalvas depois de Sibyl (2019). Não estava muito empolgada com seu trabalho mais recente, tanto que só fui ao cinema por ser uma pré-estreia promovida pela Cineville. Não vi a hora passar, intrigada com o desenrolar do mistério em torno da morte do marido da protagonista.
Os shows foram outro ponto irrepreensível do trimestre. Abriu com Blur, teve Yeah Yeah Yeahs, Feist, e ainda fechou com The National.
Procurando serenidade na escuridão (Outubro, Novembro, Dezembro)
Outubro, mês oficial do piripaque. Na pausa forçada do trabalho e em meio ao processo de (re)aprender a descansar, tive uma sequência absurda de experiências cinematográficas. Descobri o LIFF (Leiden International Film Festival e fiquei realizada em escolher alguns títulos sem muito critério e me deparar com tanta coisa boa. O primeiro da lista foi o ótimo The Sweet East, de Sean Price Williams. Nem sabia que o diretor e dois dos atores estariam presentes. Enriqueceu a experiência ouvi-los falar sobre o projeto e as trocas vividas ao longo da gravação.
Os melhores longas do LIFF, para mim, foram Poor Things, de Yorgos Lanthimos, Carvão, de Carolina Markowicz, e Yannick, de Quentin Dupieux.
Poor Things, como tudo que as mãos de Lanthimos tocam, é um oceano aberto para polêmicas. Quem nunca ouviu falar do livro que o inspirou (e mesmo quem teve contato) pode achar estranho, e ele de fato provoca desconfortos visuais. Contudo, é de uma insanidade encantadora. Viagem por cidades reimaginadas pelo diretor e pela mente complexa de Bella Baxter.
Carvão foi um dos poucos títulos brasileiros da programação, e é exemplo do estilo cinematográfico que mais me encanta no cinema contemporâneo brasileiro. Maeve Jinkins segue incrível, mas quem me chamou atenção foi Camila Márdila. Bastava ver o rosto dela em cena para rir largado. Dei gostosas gargalhadas com os diálogos, de um humor refinado e, ao mesmo tempo, absurdo. Saí da sala pensando no quão triste deve ser desprezar as produções da terrinha.
Já Yannick é um Dupieux apaixonado pela arte. O longa é curto, mas recheado de muitas camadas. Daqueles filmes em que dizemos “mas ele não vai fazer isso”, e ele não só faz como não para de te surpreender. Dupieux é conhecido por ser debochado, um diretor que só vim a explorar nos últimos dois anos. Yannick destoa do estilo tradicional e nem por isso deixa de gritar as características que fazem de Dupieux quem ele é .
Perdi Le livre des solutions, de Michel Gondry, no festival, mas vi nos cinemas umas semanas mais tarde e adorei. Gondry é um bom agente do caos. Gosto do jeito dele de contar histórias muito tristes com elementos meio lúdicos que parecem destoar do enredo. Pretendo escrever sobre ele por aqui em algum momento.
No último trimestre também prestigiei o cinema brasileiro no IDFA, onde assisti Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho. Para fechar os destaques cinematográficos, vi May December, de Todd Haynes.
Retratos Fantasmas é um mergulho na nostalgia, afago para uma imigrante com saudades incuráveis do Brasil. Homenagem linda aos cinemas de rua e à história do diretor. Com May December voltei ao universo ficcional para uma briga de gigantes em tela. Juliane Moore parece chamar Natalie Portman para luta a cada troca das personagens. Ademais, é uma história de terror moderna que me fez pensar bastante sobre a recepção pública ao sensacionalismo.
“Como se... é um delírio o que eu vou dizer. Mas caramba. Às vezes acho que os loucos não são pessoas, não são reais. Seriam como encarnações da loucura da cidade, válvulas de escape. Se não existissem, mataríamos uns aos outros ou morreríamos de estresse, ou sei lá, dominaríamos aqueles guardas filhos da puta que não deixam ninguém se sentar na escada do museu, na praça dos Àngels...”
Mariana Enriquez no conto Rambla triste, do livro Os Perigos de Fumar na Cama
Na literatura, os destaques ficam para o livro de contos de Mariana Enriquez, Os perigos de fumar na cama, Como se fosse um monstro, de Fabiane Guimarães, e Os Abismos, de Pilar Quintana.
Não sou muito fã de horror e peguei o livro de Enriquez cheia de preconceitos. Contrariando expectativas, colei os olhos no Kindle. A autora leva muito a sério a intenção de esfregar a ferida aberta na cara do leitor. Os contos são curtos, mas daqueles que carregamos conosco por muito tempo. Impossível apagar as imagens construídas por Enriquez.
Fabiane Guimarães é meu xodó literário. Sou apaixonada pela simplicidade dela. Não tem linguagem rebuscada, não tem complexidade “gratuita”. Como se fosse um monstro despertou em mim o desejo de sair abraçando todas as mulheres sem precisar dizer nada. Guimarães fala das dores que despontam das decisões tomadas na vida adulta, com muito cuidado e uma delicadeza que já é marca da literatura dela. Para além disso, ainda me fez revisitar a vida das mulheres simples do meu Cerrado.
Contei mais sobre minha leitura de Os Abismos por aqui.
Os shows deram uma apaziguada, para a felicidade dos meus bolsos. Rolou um show meio morno do Queens of the stone age e uma maré de nostalgia com City and Colour. Realizei o sonho de ver PJ Harvey ao vivo e ainda deu pra sentir um pouco do calor brasileiro quando prestigiei Gilsons em Haia.
Os favoritos de 2023 por categoria
Tá, vamos ao que interessa. É fim de ano, estamos todos exaustos, e talvez você só queira saber quais foram os meus favoritos do ano sem muitas delongas. Lembrando que os escolhidos não foram necessariamente lançados em 2023. Vamos lá:
Filmes
Past Lives, de Celine Song
Pink Moon, de Floor van der Meulen
Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho
Yannick, de Quentin Dupieux
Livros
Não fossem as sílabas de sábado, de Mariana Salomão Carrara
As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles
Os Abismos, de Pilar Quintana
Diorama, de Carol Bensimon
Shows
Feist no Tivoli Vredenburg, em Utrecht
Fever Ray no Melkweg, em Amsterdam
PJ Harvey no Paradiso, em Amsterdam
Blur no Ziggo Dome, em Amsterdam
E para você? Quais foram os destaques de 2023? Me conte nos comentários! Aceito dicas de séries também, pois como vocês podem perceber, não vi na-da este ano…
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Aproveitarei o recesso entre Natal e Ano Novo para recarregar as baterias, mas estou de volta em Janeiro. Tem algum tema em particular que você gostaria de ver por aqui? Alguma curiosidade sobre ser imigrante, ou sobre qualquer outro assunto abordado nas cartinhas? Me conte nos comentários (ou por e-mail) :)
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro, boas festas e até 2024!
Amei as recomendações! Tô doidinha para assistir "Past Lives", e esperando essa estreia no Brasil ansiosamente. Todo ano eu encontro alguém que colocou "Diorama" na lista dos melhores do ano, acho que é um sinal para eu colocar na lista de prioridades ano que vem. Amo ver lista de melhores do ano das pessoas, acho que nós descobrimos muito de alguém só dando uma olhada nos gostos de livros e filmes. Coloquei vários na minha lista, obrigada!
Diorama também foi um melhor do ano em que li esse livro, incrível como a escritora amadureceu. Tu também teve essa impressão já tendo lido os antigos dela? Ainda tô devendo pegar O clube dos jardineiros de fumaça.
E preciso muito ler Pilar Quintana, vou dar um jeito de colocar na lista no ano que vem 💜
um ótimo final de ano pra ti, Lidy!