[Edição #32]
Servia água da jarra no copo quando notei que o líquido derramava. O copo passou de meio cheio para uma imensa poça d’água sobre a mesa, o conteúdo isolado deu palco a um pouco de caos. Por onde começar? Levantar o copo transbordando e deixar pingar enquanto o levo até a pia. Baixar a cabeça e beber um pouco para manusear o copo sem aumentar a bagunça. Amparar o objeto com um pano. Pensar as opções acelera o ritmo da respiração e dá cabo a desnecessária ansiedade.
Diante daquele pequeno desequilíbrio numa manhã fria de outono, enxerguei fragmentos da minha atual vivência. Estava eu igualmente a desaguar. A tentar comportar num objeto compacto tudo que já não consigo mais sustentar.
Ser uma pessoa ensolarada fosse talvez alternativa mais simples, contudo cresci com nuvens cinzas pairando sob a minha cabeça. Busquei ajuda porque não nasci para ser fungo. Tamanha umidade não poderia fazer bem, sobretudo para uma criatura tão suscetível a alergias decorrentes de ácaros, poeira, e pólen. Já sabia que virar um raio de sol seria impossível, mas talvez pudesse fazer um pouco de tempestade e manter as nuvens carregadas afastadas vez por outra.
Ter auxílio externo pela psicanálise e ajuda médica me ensinou a fazer faxina como ninguém. Fez de mim igualmente agente do caos, pois apesar de todo esforço das previsões meteorológicas, as tempestades vinham sempre de supetão. Sem aviso. Pois bem, ninguém prometeu que me ensinaria a lidar com imbróglios pessoais em uma semana. Não existe dieta milagrosa para mente perturbada.
Cheguei a gabar-me pelas conquistas. Ver traumas superados deixou o coração menos sobrecarregado. A decisão de só pedir ajuda depois de mais de duas décadas de vida teve, contudo, as suas consequências. São coisas tantas a debater e achar jeito de trazer ao convívio sem causar desconforto que em dado momento é preciso um bocadinho de negligência.
Terminei por fazer isso mesmo. Estocar alguns probleminhas para mais tarde. Empilhar na gaveta do escritório, aquela que nós só lembramos de limpar uma vez ao ano. E olhe lá.
O que encontrei lá dentro deu embrulho no estômago. Nada tranquilo olhar para frente e assumir exaustão aguda, esse cansaço tão latente que chega a paralisar. A negligência estratégica virou-se contra mim. Pane no sistema. Um pouco envergonhada, mandei-me para reparo.
Em uma das sequências da série televisiva Girls, Hannah (protagonizada por Lena Dunham, autora da série) declara:
"You know when you're young and you drop a glass and your dad says 'Get out of the way' so you can be safe while he cleans it up? Well, now nobody really cares if I clean it up myself. Nobody really cares if I get cut with glass. If I break something, no one says 'Let me take care of that.'" (deixando o texto caos a imagem não carregue)
Ninguém além de mim pode reparar o pane do sistema. Entrar no reino da vida adulta é abraçar a carga mental eterna de ter que se responsabilizar pelos mínimos detalhes, pois ninguém se importa. E quem no fundo se importa, nem sempre tem tempo de manifestar preocupação. Quando levo um tombo, preciso dar um jeito de me levantar sozinha e lidar com as possíveis consequências desse tombo igualmente só. Ainda sou capaz de me convencer que fui quem provocou o tombo.
Ter consciência de que quem desconfigurou o sistema fui eu é igualmente vergonhoso. O refrão de Just, do Radiohead, ecoa. "You do it to yourself, you do. And that's why it really hurts". Há acontecimentos em série que escapam do nosso controle, esse negócio chamado vida que se dá mesmo em meio a atropelos. E no meio disso tudo nem sempre existe disposição para enfrentar as questões.
Parada por alguns minutos encarando o papel, enquanto despejava ideias desordenadas, a pele deu seus estalos implorando pelas minhas unhas. Diante de nervosismo e situações de estresse, minha pele coça. É uma condição conhecida, e só um comprimido de cetirizina dá conta. Com os braços vermelhos de tanto coçar-me (pois a medicação leva tempo a fazer efeito), frustrada e cheia de insatisfação comigo mesma, assumi com pesar: desaprendi o descanso. Enchi tanto a caixola de caraminholas que já não sei mais como esvaziá-la.
Engolir sapo ou deixar para mais tarde é um verniz conveniente, mas que logo serve para dar uma rasteira. Quando a situação provoca feridas e encaro o sangue escorrendo, o peito desassossega diante do reconhecimento que permiti que chegasse àquele ponto.
Quando me deito no sofá focada em olhar o teto por cinco minutos sem interrupção, já me pega pela mão a ansiedade. Pois preciso primeiro rodear-me de algum livro, caderno, computador, qualquer coisa capaz de ocupar o tempo e me dar a sensação de ser produtiva. Mesmo se esvaziasse a sala antes de me jogar no sofá para evitar cair na tentação de me distrair com algo, é certo que ao cabo de dois minutos me lembraria de uma louça por lavar ou o cesto de roupa suja transbordando tal qual o copo de água mal servido.
Não tive ensinamento algum sobre como parar. Isso de tirar tempo para não fazer absolutamente nada soa absurdo. Não existe conceito de descanso que venha isento de culpa.
Agora, parada à força, tenho tirado todo o tempo do mundo para limpar a água derramada. Abracei uma letargia que por anos lutei contra e me comprometi a aprender a desacelerar. Que me perdoem os olhos apáticos, os desânimos dos últimos tempos. Mas é que aprendi a duras penas que reparação técnica não faz milagre. Às vezes é mera necessidade de deixar repousar.
O texto de hoje dialoga com uma das primeiras edições de Estrangeirismos. Convido-lhe a lê-la:
Estimada pessoa que me lê,
A vibe anda meio pesada por aqui. Tô bagunçada, conforme comentei em edições recentes, mas tô me cuidando. Vi alguns filmes no LIFF (Leiden International Film Festival) que me inspiraram a escrever textos que serão editados e publicados por aqui. Peço, portanto, um pouco de paciência. Tão logo teremos conteúdos mais felizes por aqui.
Quem entrou em contato nos últimos tempos, tanto por comentário, email ou redes sociais: estou bem e prometo não tardar tanto a responder. Já volto!
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Lidy!! Entendo essa coisa de se obrigar a ser produtivo o tempo todo. Às vezes até consigo nao fazer nada, mas por pura preguica e sempre tomado pela sensacao de culpa. Sempre acho que tenho que fazer algo porque sempre tem algo pra fazer: limpar a casa, organizar os e-mails, separar roupa para doar, estudar ingles porque preciso e perdi muito do idioma, etc etc. Que difícil fazer a tao necessária pausa!