Abrir diários antigos tira de mim as palavras. Fico atônita diante das folhas manchadas e dos ingressos de shows e filmes desbotados entre os parágrafos. Experimento turbilhões insanos de sentimentos enquanto revisito camadas do que já foi. O movimento se repete com fotografias e vídeos. Dificilmente saio ilesa. Passo um tempo a observar, em busca das sensações de quando aqueles registros foram feitos; por vezes revoltada por ter lembranças muito vagas para além das fotos. É como tocar superfícies empoeiradas após três semanas longe de casa. Provoca asco, contrariedade, e ainda assim o dedo segue a trajetória até desenhare um traço completo.
Em Past Lives (2023), de Celine Song, Nora (Greta Lee) parece se divertir pensando no que foi feito dos antigos colegas de escola. Sua família emigrou da Coreia do Sul para o Canadá quando ela e a irmã ainda eram novas. Já adulta, ela vive nos Estados Unidos. Numa ligação com a mãe, tenta relembrar nomes e acaba caindo num curioso comentário na fanpage de um dos filmes dirigidos por seu pai. O autor era ninguém menos que Hae Sung (Teo Yoo), seu melhor amigo de infância.
Ela envia uma mensagem direta e, de repente, passamos a observá-los no campo minado das memórias. Engatam uma chamada de vídeo atrás da outra, meio desacreditados por não ter rolado nenhum estranhamento ou desconforto após tanto tempo sem notícias um do outro. Ao passo que criam a ilusão de encurtar distâncias, brincam com variações de verbos no subjuntivo. Espectadora, bisbilhotei essa espécie de webnamoro pensando nas histórias que vivi e ouvi ao longo dos anos. As pessoas da minha geração estão bastante familiarizadas com a construção de laços afetivos com pessoas que quase nunca veem ao vivo.
Quando era adolescente, conversava com pessoas do Brasil inteiro em fóruns online. Mais tarde, em tempos mais ativos de blogs, trocava comentários e e-mails. Via naqueles diálogos em caracteres a construção genuína do que poderia chamar de amizade. Passado um tempo, alguns daqueles links se transformaram em pessoas reais com as quais dividi cervejas no boteco. Depois nos afastamos novamente.
A vida executou sua valsa desajeitada. Apareceu gente nova tanto do mundo real quanto do virtual, pessoas do passado também voltaram. Eu me mudei para outro continente, deixando o espaço físico entre mim e essas pessoas ainda mais extenso e ampliando a necessidade de ter o computador enquanto aliado.
No francês, quando se pede notícias de alguém sumido há muito tempo, costuma-se dizer qu'est-ce qu'il/elle est devenu(e). Em tradução literal, seria como perguntar o que ele/ela se tornou. No lugar onde cresci, traduzimos essa expressão como "o que foi feito de fulano(a)?”*. Se no português nos interessa saber como a vida afetou a composição dessa gente, no francês já partem à provocação. Esperam que as pessoas se tornem algo, jogam-na toda a responsabilidade de seja lá o que acabaram virando.
Independente da natureza das conexões, viver nossos tempos não existe sem um computador como intermediário. Em meio a tanto movimento de mudança de casa, bairro, cidade, Estado e até país, só mesmo a internet nos permitiria manter contato. No vasto mundo das redes, ter a oportunidade de carregar amigos conosco pelos cantos é algo imenso. Contudo, com a mesma facilidade, referências se perdem e até mesmo aquela amiga com a qual trocávamos longos emails pode voltar a ser desconhecida.
Nada fica estagnado. O mundo segue sua movimentação constante, empurrando-nos e nos cobrando foco para definir prioridades que quase nunca nos permitem abarcar um mundo de gente.
No caso de Nora, Hae Sung se materializa primeiro enquanto elo com o passado. Ao se conectarem online, ela acessa imagens da infância e início de adolescência. As memórias eram parcas, mas estão ali. A chama da expectativa paira nas conversas. Existe o anseio em saber se hoje seriam amigos, quiçá amantes, caso ela não tivesse partido junto à família ao Canadá.
Até a hora em que Nora, após longos meses com a cara no computador, troca os subjuntivos pelo imperativo e intima Hae a visita-la em Nova Iorque. Ela quer saber se existe mesmo algo além dessa projeção virtual.
A que ponto uma realidade deixada para trás pode refletir no presente?
Diante da recusa dele, exausta de tanto gastar saliva e pensar possibilidades, prefere cortar contato. Ela só não contava com a astúcia do rapaz. Seu amigo de infância resolve, enfim, passar uns dias em Nova Iorque. Dez anos após ruptura imposta por Nora. Nesse meio tempo, ela conhece e se casa com um americano, Arthur (John Magaro). Mesmo sabendo disso, Hae Sung entra num avião e atravessa o globo para aterrissar no meio de uma chuva tão turbulenta quanto sua mente.
Nesse ponto, o longa nos puxa pela mão e nos convida a sair navegando nos silêncios. A verborragia dos encontros online se dissipa. Visitamos a Big Apple enquanto contemplamos trocas de olhares que, com toda licença poética do clichê, dizem mais que mil palavras.
É curioso observar Nora confrontando o passado e os traços da cultura que deixou para trás através das trocas com Hae Sung. A perspectiva amorosa me pareceu balela, o que estava em jogo era esse reencontro com quem a pequena Nora foi um dia.
Poderia ser apenas mais um crush da escola, mas ele também tem o coreano como língua mãe. E com a língua carrega a capacidade de entender as nuances das construções linguísticas e a cultura por trás delas. Arthur acredita ter à sua frente a fórmula perfeita para um conto de fadas moderno. Dois amigos de infância se reencontram pessoalmente após mais de duas décadas e descobrem que são almas gêmeas.
Nora emigrou duas vezes, adaptou-se à cultura norte-americana e vive um casamento feliz com um local, mas a insegurança de Arthur acredita que esses ingredientes não possuem peso algum para uma conexão tão intensa com o passado. "You dream in a language I can't understand" (você sonha em uma língua que não entendo), confessa num diálogo com Nora no meio da madrugada.
Por trás dos silêncios encontramos mais que o vazio de dez anos sem qualquer forma de comunicação, e essa parte parece passar batida para Arthur. Nora encontra Hae Sung primeiramente sozinha, e ao voltar pra casa e relatar o passeio ao marido. Expressa o quanto ele não parece tão coreano quanto os amigos dela, que também nasceram na Coreia, mas cresceram em outros países.
Mergulhar no passado tem seus perigos, pois nunca se sabe em que estado sairemos do mergulho. Pode ser um refresco, ou proporcionar certo amargor ao engolir um pouco da água salgada em meio à distração.
Bato na tecla do silêncio pois encontros com o passado provocam mais ruído por dentro que por fora. O único momento em que encontramos Nora sozinha é quando Hae Sung entra no carro de aplicativo e ela caminha de volta ao prédio e desaba a chorar. É quando acessamos os sentimentos dela de forma mais precisa.
Em entrevista, a diretora Celina Young disse:
“I knew that when she was walking home, she has to cry, but she’s not crying for the whole of the film. So this is the moment that she’s alone for the first time almost in the film. And she is able to allow herself to grieve like that. That walk is about the grief for the little girl that she never got to grieve. It’s not about, ‘oh my god, I wish I went with with Hae Sung,’ it’s more about the girl.”
Alimento a teoria que nossa intesidade é desfiada ao longo dos anos. Crianças não tem filtro, dizem o que pensam sem pensar duas vezes. Pais colecionam anedotadas dos filhos aprendendo o que fazer das palavras, e em muitos casos se admiram com a espontaneidade ao se expressar.
Vem então a adolescência, quando nossa semântica ganha outro peso e sentimos a consequência das palavras que saem da nossa pouca se manifestando aos poucos. Na transição para a vida adulta, o mundo parece gigantesco. Vive-se tudo muito à flor da pele, até o adultecer nos estapear a cara e assumirmos uma postura mais sisuda. Sobra menos tempo e espaço para se dedicar aos problemas e eventualmente romantiza-los.
Por isso as caminhadas solo são tão importantes. Causa incômodo, é fato. Mas também nos dá munição para nos recompor e aprender a verbalizar nossas transições. Ter firmeza no nosso próprio entendimento do que nos tornamos.
No final das contas, é essencial reconhecer e valorizar o direito universal a esses momentos de solidão, que nos permitem digerir os eventos impactantes da vida. Devemos nos permitir viver o luto de quem já não somos mais, sem medo, pois é nesse processo que encontramos a sabedoria e a força para aguentar melhor os eventuais baques que o futuro reserva.
*Assisti Past Lives num raro domingo com temperaturas acima de 32 graus. A Holanda pegava fogo enquanto eu aproveitava o ar condicionado do Kino. Estava com as imagens frescas na memória quando a Lu publicou esse texto. A combinação de ambos me inspirou a escrever sobre amizades virtuais, gente que vai e gente que fica, e todo o impacto dessas danças descompassadas que executamos com o passado.
Vamos continuar esta conversa?
Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Se você chegou aqui há pouco, te convido a conferir as publicações anteriores. E não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Um cheeeiro e até a próxima!
Que lindeza de texto, Lidy! Como sempre, adorei a reflexão. Com certeza para a nossa geração uma questão fundamental são as amizades virtuais, os contatos online. Os mais velhos não entendem muito bem essa relação, e talvez nem nós mesmos entendamos, mas é curioso pensar em como às vezes a gente deposita confiança em alguém que (supostamente) está do outro lado da tela – e um dia pode não estar mais, como no caso do relato da Lu.
O filme parece bastante interessante, gostei do plot e da analogia com o passado da protagonista. Você, companheira de um estrangeiro, deve ter sido tocada mais ainda pelas questões que o filme traz. Mas esse ponto da solidão e de olhar para o passado são, claro, universais.
Enfim, só queria principalmente elogiar mesmo.
Comprei ingresso hoje mesmo pra ver o filme semana que vem. Já estava animada sem saber de nada sobre ele, agora ainda mais.