Estrangeirismos #25 - Favoritos aleatórios do primeiro semestre
(Humilde) colcha de retalhos de acontecimentos significativos do meu 2023
Com admiração e alguma surpresa, orgulhei-me da constância no quesito organização entre os meses de janeiro e março. Mantive agendas físicas e digitais atualizadas, planejei semanas conciliando compromissos profissionais e pessoais, anotei quais filmes assisti e livros lidos até então. Marie Kondo choraria ao assistir-me executando cada uma dessas tarefas. Ainda sobrava espaço para escrever umas palavrinhas no diário todos os dias.
Magia dissipada conforme abril chegou e abocanhou-me com a sua garganta imensa. Nem deu tempo de sentir medo da arcada dentária brilhante e afiada. Considerando a agenda dos três meses seguintes, que envolvia casamentos em três países distintos, desisti. Nadei no suco gástrico até este momento, no fim do sétimo mês de 2023.
Li esta edição de No Recreio, da Anna Vitória, pouco antes de embarcar ao último casamento do ano, e carreguei comigo por alguns dias. Vivo neste impasse entre querer ter registro de tudo ou largar mão e apenas viver, confiando que minha memória jamais vai despedaçar os momentos mais marcantes.
Neste embalo, costumo agir da mesma forma todo ano. Começo cheia de planos, mestre do planejamento, mantendo diários e agenda em dia. Quando engato a quinta marcha, desisto de ter qualquer constância e abraço a estrada no maior estilo Zeca Pagodinho, deixando a vida levar-me.
Posto isso, ouvi um chamado aqui dentro dizendo que na verdade não quero perder nada disso. Afinal, nunca se sabe o amanhã. Se pensar nessa invasão de telas no cotidiano e na memória que anda cada vez mais deformada pelo cansaço, é difícil confiar na sua eficácia a longo prazo.
Decidi então fazer diferente. Fechamos o primeiro semestre do ano, ainda em tempo para tirar o pó acumulado em cima da agenda e do diário e fazer um apanhado do que rolou nos últimos seis meses.
Essa carta, portanto, será um pouco diferente das outras. Inspirei-me nos Favoritos Aleatórios da Semana da minha amiga Fernanda Lopes e, junto a você que me lê, farei uma espécie de scrapbook de baixa categoria remontando pontos importantes de 2023. Nesse balaio, claro, você também encontra quem me embalou em termos culturais ao longo da jornada.
Segregando as férias (Janeiro, Fevereiro, Março)
(pra ver se elas duram mais tempo)
A cada janeiro a Holanda fica tomada de cinza. Não sobra um pedacinho de azul no céu para alegrar corações carentes de sol. No trabalho, as obrigações se acumularam e o nível de stress foi às alturas, resultando num mês de muito cansaço e dois resfriados num curto intervalo de tempo. A alternativa aqui em casa foi se consolar pensando nas férias. Nos primeiros meses do ano, revisitei experiências do passado indo à França duas vezes.
Peguei dois fins de semana prolongados, um para visitar Paris com meu parceiro, outro para encontrar Caio em Besançon. No primeiro passeio me apaixonei por Starmania, ópera rock francesa assinada por Michel Berger e Luc Plamondon. A primeira apresentação data do fim dos anos 70 e o CD não saía do carro dos pais do meu namorado.
Coincidiu de estarmos em Paris durante a última semana de apresentações da versão "atualizada" do musical. Cheguei ao teatro sem expectativas e saí de lá arrebatada. Gostei tanto que quase cogitei comprar ingressos para ver novamente na turnê pela França e Suíça que iniciaram dali algumas semanas. Achei mais prudente, contudo, guardar aquela memória especial e revivê-la ao som das gravações da primeira versão.
Só de ouvir os primeiros acordes de SOS d'un terrien en détresse sinto os olhos marejarem. Minha favorita.
Em março fiz duas corridas oficiais. Uma de 5k em Haia, outra de 4k em Zandvoort, um dos meus percursos prediletos na Holanda. Continuei intercalando corrida com escalada, investindo na endorfina para dar conta da saúde que tava pra lá de mental.
As leituras do primeiro trimestre anunciaram um ótimo ano para livros. Finalmente li Kindred, de Octavia E. Butler, e participei pela primeira vez de uma leitura coletiva, onde me surpreendi com o quanto gostei de Frankenstein, de Mary Shelley. Minha leitura favorita, todavia, foi As Horas Nuas, de Lygia Fagundes Telles.
É inegável quantas portas foram abertas graças ao domínio da língua inglesa, porém confesso não considerá-la muito bonita. O pragmatismo dela ajuda muito, pois é mais fácil validar um ponto com poucas palavras. Leio muitos livros em inglês e acabo pesando mais o fator conteúdo do que escrita, pois é difícil ver alguma passagem que me faça pensar “uau, essa pessoa faz MÁGICA com as letras”. Pois foi o caso de Butler.
Virava as páginas admirada com o quanto essa mulher escrevia bonito. A história é horrível, ver a personagem ser cada vez mais torturada provocou desconforto. Ainda assim, não consegui largá-lo até finalizar. Vi que foi adaptado para a TV, mas gosto tanto das imagens criadas pela narrativa que a adaptação não me interessou tanto.
“Oh, que natureza estranha é o conhecimento! Uma vez que alcança a mente, se prende a ela como limo na rocha. Queria às vezes me livrar de todas aquelas ideias e sensações; mas aprendi que só havia um meio de superar a dor, e era pela morte–um estado que eu temia, mas que ainda não compreendia.
[Frankenstein, de Mary Shelley]
Frankenstein, por sua vez, li em Português. Nem sonhava o livro enquanto uma metáfora tão rica do abandono paterno, mexeu com muitas questões que vivem me rodeando a mente. Discute a obesessão pela criação e o contraponto da rejeição quando o resultado não é o esperado. A relação da criatura com a natureza me emocionou bastante, sobretudo por ter parte da história ambientada na região dos Alpes.
As pessoas—tantas—me olham ou não olham e passam, preocupadas com a própria cruz, mas quem quer saber? Sou uma desconhecida pisando na cidade que conheço e desconheço, ninguém vai me puxar pelo braço, bater no meu ombro, Dou um doce se lembrar do meu nome! Nenhum amigo ou inimigo ou primo ou prima, ah, estou contente, vontade de recreio, correr no recreio sem medo, quero a Lili com seus vidrinhos, Califórnia, Lili? Califórnia.
[As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles]
Lygia Fagundes Telles marcou a transição da adolescência à vida adulta, quando mergulhava no universo da literatura brasileira. À época, li As Meninas e alguns livros de contos. As Horas Nuas ficou de fora, e a leitura coletiva do Literature-se foi a deixa para reencontrar Lygia passados tantos anos.
Rosa Ambrósio, protagonista verborrágica e excêntrica, é uma pessoa horrível e ao mesmo tempo encantadora. A narrativa nos arrasta num percurso investigativo sobre o passado de Rosa e como ele pavimentou o caminho aos percalços do presente. Tudo isso recheado pelas referências e apuro nas palavras tão característicos de Lygia.
Os melhores filmes vistos no início do ano foram Woman Talking, de Sarah Polley, e o documentário Pamela, A Love Story, de Ryan White.
Sarah Polley era a rainha do protagonismo em filmes que me fizeram chorar na adolescência, como Minha vida sem mim e A vida secreta das palavras, ambos dirigidos por Isabel Coixet. Adoro o debut dela como diretora, Entre o Amor e a Paixão, e estava bem curiosa com Women Talking. Ela já não lançava nada há um tempo.
Carregado de diálogos, poderia ser um longa cansativo, mas não consegui desgrudar os olhos da tela. As atuações são de um magnetismo absurdo, e um dos maiores trunfos de Polley é imprimir a dor na fala e nos gestos. Zero necessidade em exibir sequências de violência explícita como certos diretores tanto gostam.
Pamela, A Love Story, me surpreendeu pois era apenas mais um documentário da Netflix. Tornou-se, contudo, a melhor representação do quanto a mídia é forte em destruir a imagem de qualquer figura pública. Tinha uma ideia bem errada de quem é Pamela Anderson. Pude conhecer um pouco da mulher por trás do famoso maiô vermelho e derramar lágrimas, dado que as pautas levantadas no documentários são universais.
O prêmio de comida mais gostosa do trimestre fica com a pizza napolitana Purple Dream, da nossa pizzaria favorita Old Scuola, em Rotterdam.
Casacos a menos e o início da saga dos casamentos (Abril, Maio, Junho)
Abril começou com show de Fever Ray e muita empolgação pois, após muito tempo sem receber visitas, tinha data marcada para receber minha amiga Fernanda em casa. Amo toda e qualquer oportunidade de mostrar um pouquinho da Holanda a pessoas queridas. Morando fora há tanto tempo, uma das maiores dores é não ter mais tantas ocasiões para estar fisicamente com amigos. Quando alguém vem do Brasil pra cá, então… não há privilégio maior.
Maio marcou o início da saga dos casamentos. Sendo o primeiro no Brasil, aproveitamos para visitar meus pais e passar uns dias entre o Goiás, São Paulo, e Rio Grande do Sul. A parada seguinte foi em Marbella, no sul da Espanha, e o trimestre fechou com show do Blur.
Antes das duas viagens completei 32 anos, mas essa coisa de envelhecer vou mastigando ao longo dos meses, a ponto de me esquecer que fiz aniversário há pouco tempo.
A melhor leitura desses três meses foi Não fossem as sílabas de sábado, de Mariana Salomão Carrara, com menção honrosa a Helena, de Machado de Assis. Peguei gosto pelas leituras coletivas do Literature-se, é fato. Há anos quero reler Machado e a LC veio a calhar por ser justo um livro dele que ainda não havia lido. Fiquei tão maluca pelo reencontro que já comprei o box da editora Antofágica contendo Quincas Borba, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Li todos no Ensino Médio e ainda não tinha edições físicas para chamar de minhas.
O passado é um pecúlio para os que já não esperam nada do presente ou do futuro; há ali sensações vivas que preenchem as lacunas de todo o tempo.
[Helena, de Machado de Assis]
Helena é diferentão, um Machado mais melodramático, exagerad. Rolou certo estranhamento nas primeiras cinquenta páginas, mas logo passou. O essencial do autor estava ali. Sacadas espertas, personagens bem construídas e marcantes, além do retrato vivo do Rio de Janeiro que ele pintava com primor.
Mariana Salomão Carrara aborda um dos meus temas prediletos em todos seus romances. A morte e o luto são pontos sensíveis difíceis de lidar, e ela os aborda com sutileza e muita originalidade. Não fossem as sílabas de sábado me rendeu risos nervosos e dor no coração, visto que é impossível não sofrer junto com a protagonista. Livraço.
Com o aumento das temperaturas e dias mais ensolarados, o cinema ficou para segundo plano. Passar tempo lá fora absorvendo o máximo de Vitamina D era urgente, e as salas escuras com projeções tiveram que esperar. Bocadinho vergonhoso assumir que não vi um filme sequer em junho.
Porém vi bastante coisa legal entre Abril e Maio. No trajeto de ida ao Brasil vi o holandês Pink Moon, de Floor van der Meulen, que me deixou transtornada das ideias. Não fosse a empolgação do reencontro com a terra mãe, teria chorado de soluçar.
Em termos de comida não houve competição. Colocaria todos os quitutes preparados por mainha aqui. Procurei fotos e notei que não tirei uma sequer, pois a cada refeição montava uma linda montanha no prato e devorava antes mesmo de pensar em foto. O melhor de todos foi uma carne de panela feita na nossa última segunda em São Paulo. Parece que consigo sentir o cheiro até agora.
Ah, e não posso deixar o gosto especial de infância do pudim da tia Isabel de fora. Ao menos lembrei de tirar foto após cortar um pedaço:
E você? Me conta o que rolou de bacana nos primeiros seis meses de 2023? Esse texto estava previsto para duas semanas atrás, mas Barbie aconteceu e precisei adiar o envio. Lá se foi um mês inteiro, daqui a pouco piscamos para acordar em 2024. Escrevo esta nota final enquanto ouço Can’t Stand It, do Wilco, que revejo em breve nos palcos. Repassar o primeiro semestre trouxe um gás para a reta final deste ano. Vão ser meses pesados com o sol cada vez menos presente, mas já arranjei ocupações para me distrair. Com tantos shows e preparativos para um evento muito especial no ano que vem, não há de ter brecha para o tédio.
Vamos continuar esta conversa? Você pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta costuma demorar, mas chega.
Um cheiro e até a próxima!