Volto para recolher o que escorregou dos bolsos, e para tentar caminhos nas beiradas que não tive tempo de explorar antes.
Desbravei territórios distintos em sete anos de Europa. Dos mais clichês, como Paris e Londres, até uns cantinhos que até então não imaginava cruzando o caminho, como Vico Equense (Itália) e Benahavís (Espanha). Senti um pouco de vergonha por, em meio às modestas andanças, desconhecer o agroturismo. Caso o termo não lhe seja familiar, explico. Consiste numa modalidade de hospedagem em terrenos afastados dos grandes centros, onde prevalece a agricultura familiar.
Os quartos são rústicos, optam pela simplicidade, e os produtos servidos no restaurante são, em sua grande maioria, produzidos no próprio local. No Agriturismo BarbaGust*, em Cesana Torinese, vi meu marido chorar de felicidade ao levar a primeira garfada de rôti de veau à boca.
Reservamos três dias para uma roadtrip de moto que passaria por parte dos Alpes franceses, com uma escorregada estratégica na Itália, outro trecho por parte do sul da França, e mais um pouquinho dos Alpes para fechar o ciclo e retornar à casa dos meus sogros.
Meu esquema de viagem vêm carregado de preocupações e planejamento. Numa imensa lista, repasso tudo que preciso conferir antes de trancar a porta de casa por uns dias. Começo pelo básico, que é checar a temperatura do destino para ter uma ideia do que merece espaço na mala. Depois leio sobre a história do local, pesquiso atividades, busco referências da gastronomia local, complemento com endereços de bares e restaurantes.
Longe de mim seguir tudo à risca, mas fazer este breve trabalho de pesquisa deve ser o equivalente ao que significava, antigamente, certificar que a bússola está funcionando antes de sair numa boa jornada. Preciso daquele terreno firme de possibilidades no qual posso me apoiar, sobretudo quando desembarco em lugares até então desconhecidos.
Afora breves passeios como passageira de uma moto, nunca havia passado três dias tendo-a como meu único meio de transporte. Tampouco acompanhada de um top case minúsculo que nos exigiu minúcia das escolhas do que viajaria conosco.
Deixei tudo nas mãos de N. Ainda em casa, muito antes da viagem começar, ele abriu o Maps, mostrou toda a rota que tinha em mente, as opções de locais para dormir, o que poderia ser feito caso quiséssemos prolongar ou encurtar parte dos trajetos. Andava indisposta, carente de energia; confiei e concordei sem impor muitas questões.
Na hora a gente vê o que faz.
As coisas que o desprendimento nos proporciona. Livrar-me da obrigação de organizar qualquer detalhe relaxou meus cinco sentidos para essa aventura até então improvável.
Tenho mais energia nas montanhas. Perco-me fácil nas paisagens. Nas primeiras horas desfrutei leve da sensação de liberdade por não estar enfiada num carro. Via-me tão próxima das cordilheiras secas, de pedra cinza clara. Os desfiladeiros, em alguns trechos, destoavam com árvores fartas.
Flutuei naqueles cenários desacreditada pela natureza dos Alpes, que se esconde debaixo da neve no inverno, e que até então só conhecia assim, com quilos de maquiagem.
Carrego a imagem da França se transformando em Itália nas placas que mudam de idioma, o I nas placas dos carros que toma o lugar dos FR, e todas as variantes suíças. Nós, invasores, carregamos o NE de Nêuchatel. A moto é Suíça, emprestada do amigo franco-suíço.
Esse pedaço parece fragmento perdido da Haute-Savoie francesa, com toques de italiano. É mais degradado, descuidado, ruidoso de condutores desapegados das regras.
Passamos a primeira noite em Cesana Torinese. Colado na fronteira entre França e Itália, me surpreendeu o francês fácil dos italianos. Nosso cansaço optou por jantar no hotel. Pensei num cardápio típico com pastas e talvez pizzas, terminei com um dos melhores banquetes da minha vida.
Queijo de leite de vaca, vitello tonato, massa recheada com ricotta e espinafre, rôti de veau, tiramisu de pistache… não parava de chegar comida. Tudo caseiro, feito com amor naquele mesmo espaço. Digno de lágrimas emocionadas.
Na manhã seguinte, descoberta do véu da noite, afundei na trilha sonora da fazenda. Cachorros correndo pelo vasto campo, uma senhorinha na granja se ocupando das galinhas, e o prenúncio do calor que nos acompanharia no segundo trecho do passeio.
A paisagem voluptuosa dos Alpes ficou mais árida quando atravessamos Briançon e descemos em direção a Avignon. Apesar do capacete que nos cobre a cabeça, até os cheiros parecem mudar. Sinto uma mistura de alecrim com terra molhada, a chuva breve que poderia estragar a experiência, mas acabou dando refresco ao calor abafado da Provence.
Na beira da estrada, noto as oliveiras os ciprestes que tanto encantaram Van Gogh na temporada passada em Saint-Rémy.
Subimos e descemos o 'gigante da Provence', Mont Ventoux, e paramos em Vaison-la-Romaine, cidade medieval da região de Vaucluse. Deixamos as coisas no hotel, tomamos um banho e equipei-me de short, camisetão, e havaianas para buscar um canto para jantar.
Pouco antes de cruzar a ponte que nos levava a Cidade Alta, descubro o significado de crue: “inundação”. Palavra que ainda não havia incorporado ao meu vocabulário. Em 1992, o rio se encheu e, em comunhão com fortes chuvas, tomou as ruas.
Entre Vaison e outras cinco comunas nas imediações, registraram 47 mortos. Atravessei esses espaços incapaz de conceber aquele mesmo cenário coberto de água. As muralhas e portões fortificados foram conservados apesar das intempéries; por um momento até tenho a impressão de caminhar no passado.
N. pôde enfim circular com um dos amigos que o inspirou a tirar licença de moto pelos Alpes, depois de cinco anos de encontros breves que só acomodavam um jantar ou almoço. Voltou para recolher os seus pedaços largados nestas estradas, e mostrar-me parte do que explorou com outros olhos no passado.
Criei também minhas nostalgias tímidas para quem viveu só dois anos de França. Recolho alguns destes cantos como parte da minha história, e até as filas imensas nas boulangeries deixam meus olhos marejando.
Em julho, pouco tempo depois de voltar do Brasil, falei sobre a tal constante busca. Meu viver entre territórios, o que me motiva a voltar ao invés deixar tudo para trás e seguir o baile. Como se desse para abdicar do que ajudou a construir nossa base.
Na edição de hoje faço eco a essa publicação, e te convido a acrescentá-la na sua lista de leituras.
Estou obcecada por Joana Bértholo e seu História de Roma. Que viagem deliciosa, quanta delicadeza com as palavras. Tenho mais 100 páginas pela frente, mas mal posso esperar para falar dele na edição para apoiadores que será enviada neste domingo, 29/09. Considere apoiar! São 5 euros mensais e dá pra assinar direto aqui na plataforma. Por enquanto, compartilho trecho de História de Roma:
“Naquele tempo, do braço engessado, acreditava que, se um dia fosse mãe, lhe daria um nome de lugar. Lassa ou Cairo, se nascesse rapaz; Odessa ou Roma, se rapariga.
Trazer uma pessoa ao mundo deve ser como? Inaugurar uma capital ou descobrir uma floresta virgem. Todas as cidades ou florestas previamente visitadas devem significar pouco perante aquela nova topografia. Imagino que será necessário determinar cada costume de raiz, cada recinto ou cruzamento.
Tornar-se mãe não andará longe de recomeçar a civilização.
Imagino.
Em viagem, cada pessoa junto de quem nos apeamos é um novo território, com as suas múltiplas atmosferas, fases férteis e de pousio que ciência nenhuma adivinha. A cada um a sua forma de chover, o seu jeito de dar fruto. Há gente que é à beira-mar, de bom convívio, ou escarpada. De quando em quando, encontrar alguém com desertos dentro, com paisagens interiores absolutamente tropicais. Com sorte, perder-se nele”.
Para além dos Estrangeirismos
Muito difícil não ser paga-pau das minhas amigas. Se você ainda não conheceu Nó na Cabeça e Paisagens Sonoras, receba aqui a oportunidade de fazê-lo já!
Vamos continuar esta conversa?
Pode responder direto nesta mensagem ou enviar um e-mail à parte para lidyanneaquino@gmail.com :) A resposta pode demorar, mas chega. Chegou aqui há pouco? Sinta-se em casa! Agradeço por me aceitar receber na sua caixa de entrada a cada duas semanas. Espero que encontre conforto nesses escritos. Te convido a conferir publicações anteriores.
Não hesite em deixar comentários ou me escrever sobre textos antigos. Amo ver como envelhecem e continuam se espalhando por aí <3
Lembrando que a newsletter também possui uma versão para apoiadores. No último domingo de cada mês envio uma publicação extra compartilhando todas as experiências culturais do mês em questão. São muitas dicas de livros, filmes e músicas. Disponível também em versão podcast para quem prefere ouvir com calma.
Um cheeeiro e até a próxima!
Viajei junto com você, Lidy!!! E me deu saudade de uma Luísa de 20 anos que deu uma viajada por aí, de trem, de carro e também numa garupa de moto, e se viu diante das infinitas possibilidades e vidas que nos cercam. Continue compartilhando roteiros, quem sabe não nos encontramos em breve?
PS - não tenho filhos humanos, mas esse trecho sobre ser mãe me pegou de jeito!
Que gostoso o relato da viagem! Me senti lá. Como também não ser paga-pau dessa minha amiga? 💛