Ao passo que a respiração se ajustava ao cansaço do passo acelerado, percebia a corrida ajudando a colocar ordem nos pensamentos. Morava em São Paulo. Correr virou hábito nas esteiras da academia, de frente para a televisão ou encarando a parede verde coberta de ranhuras. Em dado momento participei também de eventos aos domingos que me tiravam da cama antes das seis da manhã. Junto a outros desmiolados, gastava a sola do tênis nas ruas que costumava ver ocupadas por carros, ônibus, e um enxame de motocicletas em dias úteis.
Já estava o amor e deslumbre pelo lugar onde habitava desgastado, mas nestes percursos redescobri a esperança na relação com a cidade. Os dias de Minhocão fechado para circulação de veículos ajudaram a expandir o interesse.
Levei três anos para descobrir que aquele passarelão de concreto tinha horário de circulação exclusiva para pedestres.
Acompanhada ou sozinha, via-me surpresa com a malha ao redor em constante mutação, apesar de permanecer intacto o endereço. Os olhos se perdiam entre o que está abaixo do viaduto, mas sobretudo no que se conta no mundaréu de prédios que acompanha as imediações destes três quilômetros e meio.
Imaginava, pois nunca presenciei, pessoas penduradas em fios frágeis no meio da noite a usar o paredão de um dos prédios como tela. Às vezes em questão de uma semana o branco desbotado se transformava em painel colorido ou frase de efeito. Ao meu lado passavam pessoas de patins, patinete, e bicicleta, mas também esbarrava em gente sentada numa canga, assistindo a um espetáculo cujo palco era a janela de um apartamento.
Com as corridas de rua percorri São Paulo. Frequentava muito a Zona Sul, mas até mesmo no Circuito de Interlagos larguei passos algumas vezes. Nessa brincadeira acabei certa vez em Ilha Bela, interior de São Paulo, onde peguei uma subida generosa no morro e cheguei a pular troncos de árvores tombados como se fossem obstáculos.
Passei de jovem sedentária a frequentadora de academia por insistência médica. Segundo o punhado de folhas grossas com resultados de exames, estava saudável. Mas tinha sempre uma generalista dizendo que corpo em movimento é importante para uma velhice menos sofrida.
Uma hora de academia quatro vezes na semana soava como bom compromisso. Quando a corrida veio de bônus e entrou na jogada, não tinha o intuito de me profissionalizar. Só passei a ter mais cuidado para não me machucar. Em paralelo, achava fascinante ter ruas fechadas para veículos por algumas horas e substituídas por uma maré de corredores. Dava impressão real de que a cidade nos pertencia.
Lesionar o joelho me excluiu desse circuito, e quando deu para voltar às ruas já residia em outro continente.
Da corrida arranquei algumas desculpas para me familiarizar com os lugares onde me estabeleci em dois anos de mestrado. Precisei reduzir a frequência e as distâncias percorridas por orientação médica, mas aproveitei a oportunidade para levar meus tênis nada charmosos para passear pelas pracinhas de Montbéliard e nas ruas montanhosas de Annecy.
Havia tendência a repetir a dose na Holanda, não fosse a pandemia da covid-19 e todas as suas formas de destruir pequenas felicidades. Do lado de cá, apesar do confinamento, tive a sorte de morar num apartamento com sacada e ser agraciada pelo combo primavera-verão com estiagem e dias ensolarados.
Só não podia fechar os olhos para a esburacada travessia de adaptação num país diferente. Desempregada, sem saber que rumo o mundo tomava, infestado por doença até então desconhecida. Isso me consumiu mentalmente. Entrei no time das pessoas que se enclausurou e passou os meses iniciais do confinamento parada.
Ao passo que abdicava dos movimentos, comecei a transferir pesos para a cabeça. 2020 passou arrastado, mentalmente exaustivo. Ocupei o tempo cozinhando e comendo porque, no fundo, era urgente silenciar dores mastigando-as. Com o meu parceiro transformamos o testar receitas em passatempo e nós, que até então nem éramos de pedir comida, conhecemos restaurantes por intermédio de delivery. De tanto repetir todos os dias as mesmas ações perdíamos às vezes a disposição para fazer a coisa que mais nos divertia no confinamento. Com todos os estabelecimentos fechados, o delivery oferecia a falsa impressão de ser servido.
O sedentarismo pesou nos joelhos, mas sobretudo na mente.
“Ser ativo todos os dias torna mais fácil escutar essa voz interior”
Haruki Murakami
O escritor japonês Haruki Murakami já dividiu com leitores, tanto em livros quanto em entrevistas, a rotina de escrita. Tem sempre livro novo dele nas prateleiras, muito em virtude do hábito de acordar às 4 da madrugada, escrever por algo em, torno de seis horas, e sair para correr. Para Murakami, parte do processo literário consiste em manter a mente sã.
Na primeira consulta com um psiquiatra, em 2016, ele passou uma lista de orientações antes mesmo de tocarmos no assunto medicação. Era composta por coisas muito simples, que envolviam sobretudo manter hábitos saudáveis. Criar uma rotina segura, pois sem isso o remédio não faria efeito. À época, foi tão possível que após um ano de tratamento tive alta.
Quem não deu conta do baque provocado pela pandemia, contudo, foi a depressão. Voltou a 220 km/h, derrubando tudo que via pela frente. Bastou uma ligação ao psiquiatra para relembrar todo o discurso daquela primeira consulta e ver as pecinhas se encaixando. Todo o lance do Murakami focado em ter a cabeça tranquila para se dedicar à escrita fez sentido.
Viver na Holanda com a pandemia adicionada a conta me ensinou a ter disciplina. Com o clima chuvoso e ausência de sol em boa parte do ano, arranjar desculpas para não ter o corpo em movimento não era mais uma opção. Minha estratégia consistiu em comprar equipamentos para fazer exercícios de força em casa, e me equipar com casacos resistentes à chuva para dar conta da cota de cardio.
Ajustei a rotina gradualmente. Chegou um momento, por exemplo, em que cansei de correr com frio e chuva. Embora não seja fã de esteiras, fiz inscrição numa academia para resolver o problema dos dias mais feios. Hoje decido se quero levantar peso em casa ou na academia conforme o humor e os compromissos na agenda.
Atividade física é a parte inegociável da rotina. Faço de cara feia e contrariada às vezes? Por certo! Não sou bitolada, quando realmente não tem jeito, não forço. Mas me motivo a tentar completar pelo menos meia hora por dia e garanto que não houve uma vez sequer em que bateu arrependimento. Sentir a endorfina dando as caras para agradecer por mexer um pouco o corpo é bom demais.
Ter foco no exercício como parte complementar ao tratamento para depressão e ansiedade, além de ter me ajudado a atravessar momentos difíceis, me incentivou a tentar algumas corridas oficiais na Holanda. A energia é diferente daquela das provas de São Paulo, mas é igualmente divertido e também me levou a lugares lindos, como o Circuito de Zandvoort.
Oxigenando o cérebro entre uma passada e outra, mais do que nunca, me ajuda a ouvir a voz anterior da qual Murakami falou. Com os batimentos cardíacos nas alturas, coloco a baderna de pensamentos em ordem e sinto força suficiente para driblar o meu emocional.
Parecia impossível, até exagero. Mas transferir a carga mental para o esforço na execução de movimentos virou a mais poderosa arma de sobrevivência.
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Estamos há um mês sem texto novo, pois a vida andou consumida pelo caos, um clássico. O texto que deveria ser enviado hoje vai ao ar na próxima quinta, e depois volto ao ritmo normal de publicações quinzenais.
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Um cheeeiro e até a próxima!
Lidy eu que também sou diagnosticada desde o 14 anos e fiz vários tratamentos com medicamentos, posso dizer que nenhum outro funcionou tão bem quanto a atividade física. Ouvia outras pessoas sobre como fazia bem e pensava que era uma grande exagero da parte delas. Pula para mim pós pandemia, completamente desmiolada e recorrendo ao movimento, porque era tudo que me restava como tentativa de ficar bem, e pronto, o arrependimento de não ter começado antes veio mais rápido que imaginei. Adorei ler seu relato <3
Lidy, este ano eu sabia, desde o Réveillon, que ia ser muito incerto e imprevisível no trabalho e no país. Que eram coisas que nao podia controlar. Entao resolvi me focar em coisas que dependiam mais de mim e menos do mundo. E coloquei como objetivo ir à academia mais sério, nao ficar inventando desculpas para faltar. Tenho ido 5 vezes por semana faz seis meses. Nunca passei a amar, morro de preguica, mas sempre que vou volto bem. Tem ajudado bastante a cabeca nesses tempos difíceis aqui! :)